17 août 2008

Entre os bosques Eugénio de Andrade


Véspera do sol
Com o sol a trepar pelas árvores
não tardará
que a manhã corra mais limpa
e se possa beber.
Eugénio de Andrade, O peso da sombra (1982)

Somos folhas breves onde dormem
aves de sombra e solidão.
Somos só folhas e o seu rumor.
Inseguros, incapazes de ser flor,
até a brisa nos perturba e faz tremer.
Por isso a cada gesto que fazemos
cada ave se transforma noutro ser.
Eugénio de Andrade, As mãos e os frutos (1948)

As palmeiras
Também o deserto vem
do mar. Não sei em que navio,
mas foi desses lugares
que chegaram ao meu jardim
as palmeiras.
Com o sol das areias
em cada folha,
na coroa o sopro
ainda húmido das estrelas.
Eugénio de Andrade, Ofício de paciência (1994)

Último poema

É Natal, nunca estive tão só.
Nem sequer neva como nos versos
do Pessoa ou nos bosques
da Nova Inglaterra.
Deixo os olhos correr
entre o fulgor dos cravos
e os dióspiros ardendo na sombra.
Quem assim tem o verão
dentro de casa
não devia queixar-se de estar só,
não devia.
Eugénio de Andrade, Rente ao Dizer (1992)

Hoje roubei todas as rosas dos jardins
e cheguei ao pé de ti de mãos vazias.
Eugénio de Andrade, Poema para o meu amor doente (in As mãos e os frutos, 1948)

Em cada fruto a morte amadurece,
deixando inteira, por legado,
uma semente virgem que estremece
logo que o vento a tenha desnudado.
Eugénio de Andrade, As mãos e os frutos (1948)

O espírito do outono

Será
a embriaguez? O vento matinal
arrastando folhas
raparigas canções?
O sopro frio das estrelas?
Será a beleza,
o espírito do outono? Há um limite
para o homem, um limite
para suportar o peso do mundo.
Da beleza, da bárbara
orgulhosa beleza, quem sabe defender-se
sem medo do coração lhe rebentar?
Eugénio de Andrade, O sal da língua (1995)

Escrito no muro

«Lembro-me, eram todos muito jovens, eu já o não era tanto, mas isso não impedia que, no branco extenuado dos mesmos muros, as minhas palavras encontrassem nas mãos dos meus amigos o natural contraponto, nesse desejo insensato de fazermos do olhar um bem comum.

Naquela primavera, entre lúcida e ácida, tínhamos na noite o rio onde mergulhávamos inteiros, e as árvores que alguns de nós, com amorosa paciência, haviam pintado nas paredes iam-se enchendo de pássaros.»
Eugénio de Andrade, Memória doutro rio (1978)

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