31 oct. 2008

O Deus-Verme

Fator universal do transformismo.
Filho da teleológica matéria,
Na superabundância ou na miséria,
Verme - é o seu nome obscuro de batismo.
(...)

Uma faca só lâmina

(Para Vinícius de Moraes)

Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;

assim como uma bala
do chumbo pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado

qual bala que tivesse
um vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo

igual ao de um relógio
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,

relógio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;

assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;

qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto

de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso,
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.


A
Seja bala, relógio,
ou a lâmina colérica,
é contudo uma ausência
o que esse homem leva.

Mas o que não está
nele está como uma bala:
tem o ferro do chumbo,
mesma fibra compacta.

Isso que não está
nele como a coisa ciosa
presença de uma faca,
de qualquer faca nova.

Por isso é que o melhor
dos símbolos usados
é a lâmina cruel
(melhor se de Pasmado):

porque nenhum indica
essa ausência tão ávida
como a imagem da faca
que só tivesse lâmina.

nenhum melhor indica
aquela ausência sôfrega
que a imagem de uma faca
reduzida à sua boca.

que a imagem de uma faca
entregue inteiramente
à fome pelas coisas
que nas facas se sente.

B
Das mais surpreendentes
é a vida de tal faca:
faca, ou qualquer metáfora,
pode ser cultivada.

E mais surpreendente
ainda é a sua cultura:
medra não do que come
porém do que jejua.

Podes abandoná-la
essa faca intestina:
jamais a encontrarás
com a boca vazia.

Do nada ela destila
a azia e o vinagre
e mais estratagemas
privativos dos sabres.

E como faca que é,
fervorosa e energética,
sem ajuda dispara
sua máquina perversa:

a lâmina despida
que cresce ao se gastar,
que menos dorme
quanto menos sono há,

cujo muito cortar
lhe aumenta mais o corte
e se vive a se parir
em outras, como fonte.

(Que a vida dessa faca
se mede pelo avesso:
seja relógio ou bala,
ou seja faca mesmo.)

C
Cuidado com o objeto,
com o objeto cuidado,
mesmo sendo uma bala
desse chumbo ferrado,

porque seus dentes já
a bala os traz rombudos
e com facilidade
se em botam mais no músculo.

Mais cuidado porém
quando for um relógio
com o seu coração
aceso e espasmódico.

É preciso cuidado
por que não se acompasse
o pulso do relógio
com o pulso do sangue,

e seu cobre tão nítido
não confunda a passada
com o sangue que bate
já sem morder mais nada.

Então se for faca,
maior seja o cuidado:
a bainha do corpo
pode absorver o aço.

Também seu corte às vezes
tende a tornar-se rouco
e há casos em que ferros
degeneram em couro.

O importante é que a faca
o seu ardor não perca
e tampouco a corrompa
o cabo de madeira.

D
Pois essa faca às vezes
por si mesma se apaga.
É a isso que se chama
Maré baixa da faca.

Talvez que não se apague
e somente adormeça.
Se a imagem é relógio,
a sua abelha cessa.

Mas quer durma ou se apague:
ao calar teu motor,
a alma inteira se torna
de um alcalino teor

bem semelhante à neutra
substância, quase feltro,
que é a das almas que não
têm facas-esqueleto.

E a espada dessa lâmina,
sua chama antes acesa,
e o relógio nervoso
e a tal bala indigesta,

tudo segue o processo
de lâmina que cega:
faz-se faca, relógio
ou bala de madeira,

bala de couro ou pano,
ou relógio de breu,
faz-se faca sem vértebras,
faca de argila ou mel.

(Porém quando a maré
já nem se espera mais,
eis que a faca ressurge
com todos seus cristais.)


E
Forçoso é conservar
a faca bem oculta
pois na umidade pouco
seu relâmpago dura

(na umidade que criam
salivas de conversas,
tanto mais pegajosas
quanto mais confidências).

Forçoso é esse cuidado
mesmo se não é faca
a brasa que te habita
e sim relógio ou bala.

Não suportam também
todas as atmosferas:
sua carne selvagem
quer câmaras severas.

Mas se deves sacá-los
para melhor sofrê-los,
que seja algum páramo
ou agreste de ar aberto.

Mas nunca seja ao ar
que pássaros habitem.
Deve ser a um ar duro,
sem sombra e sem vertigem.

E nunca seja à noite,
que estas têm as mãos férteis,
Aos ácidos do sol
seja, ao sol do Nordeste,

à febre desse sol
que faz de arame as ervas,
que faz de esponja o vento
e faz de sede a terra.

F
Quer seja aquela bala
ou outra qualquer imagem,
seja esmo um relógio
a ferida que guarde,

ou ainda uma faca
que só tivesse lâmina,
de todas as imagens
a mais voraz e gráfica,

ninguém do próprio corpo
poderá retirá-la,
não importa se é bala
nem se é relógio ou faca,

nem importa qual seja
a raça dessa lâmina:
faca mansa de mesa,
feroz pernambucana.

E se não a retira
quem sofre sua rapina,
menos pode arrancá-la
nenhuma mão vizinha.

Não pode contra ela
a inteira medicina
de facas numerais
e aritméticas pinças.

Nem ainda a polícia
com seus cirurgiões
e até nem mesmo o tempo
como os seus algodões.

E nem a mão de quem
sem o saber plantou
bala, relógio ou faca,
imagens de furor.


G
Essa bala que um homem
leva às vezes na carne
faz menos rarefeito
todo aquele que a guarde

O que um relógio implica
por indócil e inseto,
encerrado no corpo
faz este mais desperto.

E se é faca a metáfora
do que leva no músculo,
facas dentro de um homem
dão-lhe maior impulso.

O fio de uma faca
mordendo o corpo humano,
de outro corpo ou punhal
tal corpo vai armando,

pois lhe mantendo vivas
todas as molas da alma
dá-lhes ímpeto de lâmina
e cio de arma branca,

além de ter o corpo
que a guarda crispado,
insolúvel no sono
e em tudo quanto é vago,

como naquela história
por alguém referida
de um homem que se fez
memória tão ativa

que pôde conservar
treze anos na palma
o peso de uma mão,
feminina, apertada.


H
Quando aquele que os sofre
trabalha com palavras,
são úteis o relógio,
a bala e, mais, a faca.

Os homens que em geral
lidam nessa oficina
têm no almoxarifado
só palavras extintas:

umas que se asfixiam
por debaixo do pó
outras despercebidas
em meio a grandes nós;

palavras que perderam
no uso todo o metal
e a areia que detém
a atenção que lê mal.

Pois somente essa faca
dará a tal operário
olhos mais frescos para
o seu vocabulário

e somente essa faca
e o exemplo de seu dente
lhe ensinará a obter
de um material doente

o que em todas as facas
é a melhor qualidade:
a agudeza feroz ,
certa eletricidade,

mais a violência limpa
que elas têm, tão exatas,
o gosto do deserto,
o estilo das facas.

I
Essa lâmina adversa,
como o relógio ou a bala,
se torna mais alerta
todo aquele que a guarda,

sabe acordar também
os objetos em torno
e até os próprios líquidos
podem adquirir ossos.

E tudo o que era vago,
toda frouxa matéria
para quem sofre a faca
ganha nervos, arestas.

Em volta tudo ganha
a vida mais intensa,
com nitidez de agulha
e presença de vespa.

Em cada coisa o lado
que corta se revela,
e elas que pareciam
redondas como a cera

despem-se agora do
caloso da rotina,
pondo-se a funcionar
com todas suas quinas

Pois entre tantas coisas
que também já não dormem,
o homem a quem a faca
corta e empresta seu corte,

sofrendo aquela lâmina
e seu jato tão frio,
passa, lúcido e insone,
vai fio contra fios.


*


De volta dessa faca,
amiga ou inimiga,
que ais condensa o homem
quanto mais o mastiga;

de volta dessa faca
de porte tão secreto
que deve ser levada
como o oculto esqueleto;

da imagem em que mais
me detive, a da lâmina,
porque é de todas elas
certamente a mais ávida;

pois de volta da faca
se sobe a outra imagem,
àquela de um relógio
picando sob a carne,

e dela àquela outra,
a primeira, a da bala,
que tem o dente grosso
porém forte a dentada

e daí à lembrança
que vestiu tais imagens
e é muito mais intensa
do que pode a linguagem,

e afinal à presença
da realidade, prima,
que gerou a lembrança
e ainda a gera, ainda,

por fim à realiddade,
prima e tão violenta
que ao tentar apreendê-la
toda imagem rebenta.

Manoel de Barros

Há um comportamento de eternidade nos caramujos.
Para subir os barrancos de um rio, eles percorrem um dia inteiro até chegar amanhã.
O próprio anoitecer faz parte de haver beleza nos caramujos.
Eles carregam com paciência o início do mundo.
No geral os caramujos têm uma voz desconformada por dentro.
Talvez porque tenham a boca trôpega.
Suas verdades podem não ser.
Desde quando a infância nos praticava na beira do rio
Nunca mais deixei de saber que esses pequenos moluscos
Ajudam as árvores a crescer.
E achei que esta história só caberia no impossível.
Mas não; ela cabe aqui também.

Dialética

É claro que a vida é bela
E a alegria, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E que tenho tudo pra ser feliz

Mas acontece que eu sou triste...

Dedução

Não acabarão nunca com o amor,
nem as rusgas,
nem a distância.
Está provado,
pensado,
verificado.
Aqui levanto solene
minha estrofe de mil dedos
e faço o juramento:
Amo
firme,
fiel
e verdadeiramente.

Clarice Lispector.

Não posso me resumir porque não se pode somar uma cadeira e duas maçãs. Eu sou uma cadeira e duas maçãs. E não me somo.

Manoel de Barros

O poema é antes de tudo um inutensílio.

Hora de iniciar algum
convém se vestir de roupa de trapo.
.
Há quem se jogue debaixo de carro
nos primeiros instantes.
.
Faz bem uma janela aberta.
Uma veia aberta.
.
Pra mim é uma coisa que serve de nada o poema
Enquanto vida houver
.
Ninguém é pai de um poema sem morrer
Esfuziante e verde,
um beija-flor entrou pela janela,
(pensei que a tua boca ainda estivesse aqui…)
(...)

Pré-História

Mamãe vestida de rendas
Tocava piano no caos.
(...)

O Catador

Um homem catava pregos no chão.
Sempre os encontrava deitados de comprido,
ou de lado,
ou de joelhos no chão.
Nunca de ponta.
Assim eles não furam mais - o homem pensava.
Eles não exercem mais a função de pregar.
São patrimônios inúteis da humanidade.
Ganharam o privilégio do abandono.
O homem passava o dia inteiro nessa função de catar pregos enferrujados.
Acho que essa tarefa lhe dava algum estado.
Estado de pessoas que se enfeitam a trapos.
Catar coisas inúteis garante a soberania do Ser.
Garante a soberania de Ser mais do que Ter.

O Morto

Eu estava dormindo e me acordaram
(...)

Confissão

Cuido contar-lhe o mal, pedir-lhe a cura…
Abrir-lhe o incerto coração que chora…
(...)

Soneto de Aniversário

Queira-se antes ventura que aventura
À medida que a têmpora embranquece
E fica tenra a fibra que era dura.
E eu te direi: amiga minha, esquece…
(...)

Nadador

É a despedida, que me encanta,
quando te desprendes ao vento,
fiel à queda

Agora eu sou tão ocaso!

VII
de Manoel de Barros

Manoel, isso não é doença,
pode muito que você carregue para o resto da
vida um certo gosto por nadas…
E se riu.
(…)
Há que apenas saber errar bem o seu idioma.

2.5
de Manoel de Barros

Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
(...)

O Catador
de Manoel de Barros

Acho que essa tarefa lhe dava algum estado.
Estado de pessoas que se enfeitam a trapos.
(...)

Desencanto

Meu verso é sangue. Volúpia ardente…
Tristeza esparsa… remorso vão…
Dói-me nas veias.

Caixão Fantástico

Hoffmânnicas visagens
Enchiam meu encéfalo de imagens
As mais contraditórias e confusas!

Outubro não acabou...

Hoje, pensando! Sinto que...
Sabe, O Romulo...
Voce vai
mas hein
Outubro não acabou..

Leminski

nunca cometo o mesmo erro
duas vezes
já cometo duas três
quatro cinco seis
até esse erro aprender
que só o erro tem vez

Para um amigo antigo... Querido, ja fizemos promessas demais....

C Am F G
Já me acostumei com a tua voz
C Am F G C Am
Com teu rosto e teu olhar, me partiu em dois
F G C Am F G
E procuro agora o que é minha metade
Am G
Quando não estás aqui
Am G
Sinto falta de mim mesmo
Bb Am F G
E sinto falta do meu corpo junto ao teu
C Am F G
Meu coração
C Am F G
é tão tosco e tão pobre
C Am F G C Am F G
Não sabe ainda os caminhos do mundo
Am G
Quando não estás aqui
Am G
Tenho medo de mim mesmo
Bb Am F G (C)
E sinto falta do teu corpo junto ao meu
G F C
Vem depressa pra mim que eu não sei esperar
F Am G
Já fizemos promessas demais
C F C Am G F G (C)
Já me acostumei com a tua voz, quando estou contigo estou em paz

Am G
Quando não estás aqui
Am G
Meu espírito se perde
(Bb Am F G C)
Voa longe, longe, longe

Paulo Leminski

o barro
toma a forma
que você quiser

você nem sabe
estar fazendo apenas
o que o barro quer"

Paulo Leminski

30 oct. 2008

Quem tem flores não precisa de Deus. :~

O meu olhar é nítido como um girassol
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direira e para a esquerda
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É quilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo comigo
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cadea momento
Para a eterna novidade do mundo...

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo.

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela ´,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe porque ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar...

29 oct. 2008

aiai, 39

sentei a beleza em meus joelhos e achei-a amarga, e injuriei-a...

As sombras curvadas no amarelo da madrugada



Ola, falta uma hora para todos os portais do mundo se abrirem, logo logo, serão 3:00 horas... Estou aqui envolvido de suor e calafrios, o que penso é um cinema sem foco, quero comer as tripas de carmelo bene, quero entrar pelo cu de Stan Brakhage e voar pelos planos imanentes de Norman Mclaren, Grite , Grite e mergulharei no infinito do nosso amor pelo seu grito, grito invertebrado, neste horizonte inváriavel, virgulas desaparecem, os pontos. . . . Não existem, não quero a concordância putrida desta sociedade escrotizada. É com a morte que me deito e são seus braços que esfriam meu arder nesta madrugada chuvosa, ao me deparar com estes beijos sonoros que vem do céu escuro, ... tem gente que pensa que são todos iguais.

Ivan Serpa..












não é a mesma.

Hans Bellmer


Olavo Bilac

Deixa o olhar do mundo
Deixa que o olhar do mundo enfim devasse
Teu grande amor que é teu maior segredo!
Que terias perdido, se, mais cedo,
Todo o afeto que sentes se mostrasse?
Basta de enganos!
Mostra-me sem medo
Aos homens, afrontando-os face a face:
Quero que os homens todos, quando eu passe,
Invejosos, apontem-me com o dedo.
Olha: não posso mais!
Ando tão cheio
Deste amor, que minh'alma se consome
De te exaltar aos olhos do universo...
Ouço em tudo teu nome, em tudo o leio:
E, fatigado de calar teu nome,
Quase o revelo no final de um verso.

Olavo Bilac

ARTE POÉTICA

ARTE POÉTICA

Mirar o rio, que é de tempo e água,
E recordar que o tempo é outro rio,
Saber que nos perdemos como o rio
E que passam os rostos como a água.

E sentir que a vigília é outro sonho
Que sonha não sonhar, sentir que a morte,
Que a nossa carne teme, é essa morte
De cada noite, que se chama sonho.

E ver no dia ou ver no ano um símbolo
Desses dias do homem, de seus anos,
E converter o ultraje desses anos
Em uma música, um rumor e um símbolo.

E ver na morte o sonho, e ver no ocaso
Um triste ouro, e assim é a poesia,
Que é imortal e pobre. A poesia
Retorna como a aurora e o ocaso.

Ás vezes, pelas tardes, uma face
Nos observa do fundo de um espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela nossa própria face.

Contam que Ulisses, farto de prodígios,
Chorou de amor ao avistar sua Ítaca
Humilde e verde. A arte é essa Ítaca
De um eterno verdor, não de prodígios.

Também é como o rio interminável
Que passa e fica e que é cristal de um mesmo
Heráclito inconstante que é o mesmo
E é outro, como o rio interminável.

Jorge Luis Borges

28 oct. 2008

Ondas

Gota a gota tomba o silêncio. Condensa-se no telhado da mente e cai por tanques de água abaixo. Para sempre sozinho, sozinho, sozinho – ouço o silêncio tombar e espalhar seus círculos até os mais longínquos recantos. Saciado e repleto, sólido na satisfação da meia-noite, eu, a quem a solidão destrói, deixo que o silêncio tombe gota a gota.

....

choro....

as

Mas,

"Andai com o que está
só, quando ele seguir...
senão, ele não terá outro
para ajudá-Io a subir."

Violência e Paixão

Na solidão é quando estamos menos só.

Corvos voam em bandos, a águia voa alto sozinha

Não é a força do sentimento elevado, é a sua duração que faz os homens superiores.
Friedrich Nietzsche

http://www.nietzscheana.com.ar/musica/Nietzsche%20-%20%20Aus%20der%20Jugendzeit.mp3

Friedrich Rückert

Die gute Nacht,
die ich dir sage,
Freund, hörest du!
Ein Engel, der
Die Botschaft trage
Geht ab und zu.

Er bringt sie dir
Und hat mir wieder
Den Gruz gebracht:

Dir sagen auch
Des Freundes Lieder
Jetzt gute Nacht.

-

Warum willst du andere fragen,
dies es nicht meinen treu mit dir?
Glaube nicht, als was dir sagen,
diese beiden Augen hier!
Glaube nicht den fremden Leuten,
glaube nicht dem eigenen Wahn;
nicht mein Tun
auch solst du deuten,
sondern sieh die Augen an!
Schweigt die Lippe deinen Fragen,
oder zeugt sie gegen mich.
Was auch meine Lippen sagen,
sieh mein Auge, ich liebe dich!

-

Eu Celebro a mim mesmo,
E o que eu assumo você vai assumir,
Pois cada átomo que pertence a mim pertence a você.

27 oct. 2008

Apressa-te, amor, que amanhã eu morro, que amanhã morro e não te vejo

A barra clara do dia...
Kaíros?

Vem.

Que eu sou gota de mercúrio, dividida,
espalhada pelo chão.

umavontadedearte.

26 oct. 2008

P.

A sua boca enlouquecida que venta fronte ao meu peito-dolorido e embaraça todo o cabelo do meu coração.

25 oct. 2008

Mas como falta o abcesso esvazado o pus escaldante e repleto de vida.


Não basta que as ruinas do deserto ainda cheirem a home; que um sôpro menstrual corra sôbre elas nos turbilhões masculinos do ceu; não basta que o combate eterno do homem e da mulher atravesse os canais ravinados de pedra, as colunas super-aquecidas do ar.

Antonin Artaud
Heliogabalo ou o Anarquista Coroado

kinski:

24 oct. 2008

Paul Valéry, O cemitério marinho

O CEMITÉRIO MARINHO

Esse tecto calmo, que pombas percorrem,
Palpita entre pinheiros, palpita entre túmulos;
Meio-dia o justo enfeita de chamas
O mar, o mar sempre no início!
O prémio depois de um pensamento,
Prolongado olhar na calma dos deuses!

Que puro trabalho de finos relâmpagos
Tanta jóia gasta de invisível espuma,
E que paz parece ali conceber-se!
Quando o sol repousa por sobre o abismo,
Subtis lavores de uma causa eterna,
O tempo cintila e o Sonho é saber.

Durável tesouro, templo de Minerva,
Acervo de calma, visível reserva,
Água sobranceira, Olho que resguardas
Tanto sono em ti sob um véu de chama.
Silencio que és meu!... Na alma edifício
Mas coberto de oiro por mil telhas, Tecto!

Templo do Tempo que um suspiro explica,
Puro ponto onde me elevo e ao qual me habituo
Cercado que estou do meu olhar marinho;
Oferenda suprema por mim feita aos deuses,
Centelhas serenas bem alto se espalham
Para a sementeira de um desdém soberano.

E tal como o fruto que em prazer se esvai,
Como em delicia refaz a ausência
Dentro de uma boca que lhe mata a forma,
Já inspiro aqui o meu futuro fumo
E o céu vai cantar à trespassada alma
Margens convertidas num amplo murmúrio.

Belo e certo céu, vê-me a ser diferente!
Após tanto orgulho, tanto e estranho ócio,
Carregado embora de plenos poderes,
Faço a minha entrega ao espaço brilhante,
Sobre o lar dos mortos corre a minha sombra
Que sabe vergar-me ao seu curso débil.

De alma bem exposta aos faróis do solstício
Eu vou sustentar-te, justiça assombrosa
Desta luz com armas sem piedade alguma!
Pura te devolvo ao lugar primeiro:
Olha para ti!... Mas devolve a luz,
Supõe que é de sombra a triste metade.

Para mim apenas, só meu, em mim próprio,
Junto a um coração, nas fontes do poema,
Entre a inexistência e o sucesso puro
Espero ouvir-me de eco à amplidão interna,
Poço de amargura sombrio e sonoro
Que é oco da lama e sempre futuro!

Enganoso escravo de tanta folhagem,
Golfo que devoras estas grandes secas!
Nos olhos que fecho, segredos magníficos,
Que corpo me arrasta ao seu preguiçoso fim,
Que fronte me atrai a este chão de ossos?
Um fulgor medita naqueles que perdi.

Fechado e sagrado, a arder sem matéria,
Pedaço terrestre ofertado à luz,
Amo este lugar, que archotes dominam,
Feito de oiro e pedras e árvores umbrosas
Onde cada mármore treme sobre sua sombra;
Mas fiel que dorme sobre as minhas campas!

Esplendida cadela, arreda o idólatra!
Sempre que me afasto e a sorrir, zagal,
Levo a demorado pasto ovelhas mistério,
O rebanho branco dos meus frios túmulos,
Deixa-me distante das pombas prudentes,
De sonhos inúteis, de anjos curiosos!

Quando chega aqui, o futuro dorme.
O lustroso insecto arranha a secura;
Ardido e desfeito, tudo o ar recebe
Em desconhecida e severa essência…
Como a vida é vasta, embriagada de ausências,
E o amargor suave, o espírito aberto.

Dão-se bem aqui os mortos ocultos
Que a terra acalenta e seca de mistério.
No alto o Meio-Dia, o Meio-Dia imóvel
Que em si mesmo pensa e a si próprio elege…
Cabeça total, diadema puro,
Quero em ti dizer secreta inconstância.

Só me tens a mim para refrear medos!
Remorsos que eu sinta, indecisões e dúvidas
são deformidade do teu diamante vasto…
Mas na sua noite pesada de mármores
Um povo divaga na raiz das árvores
E por ti vai estando, pôe-se do teu lado.

Já se dissolveram numa condensada ausência,
O barro vermelho bebeu especie branca,
A vida em oferenda passou as flores!
Onde estão dos mortos as frases banais,
A arte pessoal, as almas vulgares?
Tece a larva agora onde houvera prantos.

O gritar agudo de acesas donzelas,
Os olhos, os dentes, as pálpebras molhadas,
O enlevo de um seio a brincar com fogo,
O sangue que brilha em lábio rendidos,
Dádivas finais, dedos que as defendem,
Tudo desce à terra e regressa ao jogo!

E tu, grande alma, esperarás um sonho
Já destituído das cores de mentira
Que onda e oiro tecem aos olhos da carne?
Saberás cantar quando vaporosa fores?
Vai! Está tudo a fugir! Poroso me tens
E a santa impaciência também chega ao fim!

Imortalidade magra feita de ouro e negro,
Consoladora armada de execráveis louros
Que fazes da morte um seio materno,
A bela mentira e a piedosa astúcia!
Quem não reconhece e já não aceita
Este crânio oco e este riso eterno!

Pais do grande abismo, cabeças desertas,
Que bom solo sois sob pás de terra
E em nossos passos lançais confusão!
O vero comedor, o irrefutável verme
Nunca será vosso, que dormis na campa,
Ele vive de vida e não me abandona!

Quem sabe se amor, se ódio a mim próprio?
Tão perto me fica o seu dente secreto
Que todos os nomes lhe podemos dar!
Mas importa! Vê, quer, sonha e apalpa!
De carne lhe sirvo e até na minha cama
Passo a vida a ser desse vivo ser!

Cruento Zenão! Ó Zenão de Eleia!
Soubeste ferir-me com a flecha alada
Que vibra e que voa sem nunca voar!
Engendra-me o som e mata-me a flecha!
Ah! O sol… Que pesada sombra ele é para a alma,
Aquiles imóvel mas a caminha!

Não!…Mantém-te de pé! Na era seguinte!
Rasga, meu corpo, a pensativa forma!
Bebe, ó meu seio, o nascer do vento!
Uma frialdade saída do mar
Devolve-me a alma… Ó poder salgado!
Visite-se a onda que renasce viva!

Sim! Oceano vasto cheio de delírios,
Pele de pantera e clâmide rasgada
Por muitos milhares de deuses do sol,
Hidra que bebeu a tua carne azul
Que volta a morder-te a cintilante cauda.
Em tumulto forte e tanto silêncio,

Levanta-se o vento!… Temos que viver!
O imenso ar abre e fecha o livro,
Salta a onda em pó, enfim, dos rochedos!
Voai minhas folhas assim ofuscadas!
Ondas, penetrai! Entrai águas fartas
No telhado calmo que as velas mordiam!

23 oct. 2008

Entrevista con Danièle Huillet y Jean-Marie Straub

La bruja y el afilador
Entrevista realizada por Thierry Lounas
en Roma el 6 de julio de 1999, con la participación de Pedro Costa. Fue publicada en Cahiers du cinéma, n.° 538, septiembre de 1999. Traducción: FLV.

Azar o no, el camino que llevaba a Roma pasaba por Pontedera, pequeña población toscana que, a comienzos del mes de julio, organizaba una retrospectiva de los films del portugués Pedro Costa, gran admirador de los Straub. El azar ha querido, en todo caso, que el director de la manifestación, Marco Abondenza, nos haga descubrir el pueblo de Butí, atípico y comprometido con el arte. Un hombre, cuyo hijo actuó hace años en Dalla nube alla resistenza, evocó la próxima Pasión de Cristo adaptada de Pasolini, que el teatro del pueblo va a montar en Cabo Verde. Se acordó igualmente de la presencia de Godard en una de las representaciones de Sicilia! dadas por los Straub durante la preparación de su film. Luego nos invitó a ver la casa de los Landi, donde los Straub se alojaron durante los ensayos, y donde rodaron la escena central de Sicilia!. Frente a la chimenea, se inició una discusión entre Marcello Landi y su esposa. Ya en Roma, siempre en compañía de Pedro Costa, disfrutamos un poco de la mitología italiana que rodea a los Straub. Algunos, no sin desprecio, otros tiernamente, les han puesto el apodo de «punkabbestia», que designa ordinariamente a las hordas de vagabundos que, acompañados por sus perros, inundan las calles de Roma. No son malos, se dice, sólo un poco molestos. Efectivamente, los Straub son quizás punkabestia, cineastas punk amantes de los animales, capaces ellos mismos de ataques violentos. Luego nos dirigimos hacia Borgata Petrelli, en la periferia de Roma, donde viven los Straub. Y fue allí que tuvo lugar, en calma, bajo una partitura de Bach y un cuadro de Cézanne, la entrevista que sigue. Mientras tanto, ardía no muy lejos un gran incendio que, al atraer a las cámaras de TV, inspiró a Jean-Marie Straub la siguiente observación: “No saben que no hay nada más difícil de filmar que un fuego.”

Thierry Lounas: Sicilia! tiene más o menos la misma duración que Du jour au lendemain [Von heute auf morgen, 1997], una hora cinco minutos, para ser precisos. En Du jour au lendemain, la duración la imponían la partitura y el libreto. En Sicilia! hay una obra más vasta, Conversación en Sicilia, de Elio Vittorini, que Uds. sólo utilizaron en parte. ¿Cómo fue la adaptación de la novela?
Jean-Marie Straub: Dejamos de lado más de la mitad de la novela, algunas cosas que habrían podido dar lugar a un film de Visconti o de Fellini, sobre todo la última parte, que es completamente metafórica. Pero hace ya treinta años que desconfío de las metáforas, incluso antes de haber conocido la frase de Kafka: “Las metáforas son una de las cosas que me hacen desesperar de la escritura...” No se puede hacer films con metáforas. Para volver a la parte final de la novela, no es posible en el cine filmar a gente en trance de morir, en la oscuridad, de tifus, o de otras cosas. Ni siquiera John Ford se lo hubiese permitido.

TL: Más que elegir los pasajes que les interesaban, fue necesario, supongo, trabajar sobre lo que habían retenido de la lectura.
JMS: En esta novela, no hay una sola frase de diálogo que esté completa. Todo está entrecortado de reflexiones psicológicas o descriptivas. Además, hay todo un texto en estilo indirecto. Pero no es la primera vez que nos pasa. Ya el primer relato de la muerte de Teresa, en el Kafka [Amerika/ Klassenverhältnisse, 1984], estaba en estilo indirecto. Aquí, todo el relato del Gran Lombardo, el que está sentado en el tren, y que vemos levantarse para cerrar violentamente la puerta del compartimiento, antes de volver a sentarse para hablar del hedor a propósito de los dos policías, es un relato que no existe. En la novela, está escrito en más de un sesenta por ciento en estilo indirecto. Me acuerdo entonces de Non reconciliés [Nicht versöhnt, 1954-1965]. En esa época yo decía que se trataba de un film lacunar. Sicilia! lo es también, pero de otra manera. No había que agregar cosas con el pretexto de llegar a las dos horas de película. Hay una escena de Mon oncle, que ya cité veinte veces, la del hombre al que le falta un ojo, y que pinta rayas blancas sobre el pavimento. Ve llegar un Buick frambuesa aplastada y verde oliva, con un play-boy y una chica linda adentro. Lo sigue con su ojo, y luego levanta el pincel al ver los colores del Buick y dice: “¿Te doy un toquecito?” El cine es lo contrario de eso. Si no, es Tchaikovsky, no hay allí nada que respire, está todo atiborrado, atosigado. Es exactamente lo que Brecht le hace decir a Tiresias en Antigona: “Und mehr braucht mehr, und wird am End zu nichts.” Y más pide más, y al final se convierte en nada. La estética, es lo contrario; hay que dilatar al máximo y apretar al máximo, dejar extensiones enormes, y practicar de inmediato forzamientos extremos. He ahí toda la diferencia entre Tchaikovsky y Bach, Beethoven, Schönberg o Webern: estos últimos dejan silencios. Ahí está la responsabilidad estética: tomar un máximo de riesgos con un máximo de prudencia.

TL: ¿Qué es la prudencia?
JMS: Saber hasta dónde se puede ir demasiado lejos.

TL: ¿Y hasta dónde se puede ir demasiado lejos?
Danièle Huillet: Se decide según el material. Con temor y temblor. Si uno decide dejar un plano mudo, sabe siempre que está corriendo un riesgo.

Pedro Costa: ¿A veces tienen miedo de filmar?
JMS: No. Esto no tiene nada que ver con Kierkegaard, Temor y temblor. Es una cuestión de amor y de respeto. Uno se dice que va a filmar algo que dejará de existir, porque enseguida será ya diferente, y uno no volverá a filmarlo. Entonces, en este sentido, sí, hay un poco de miedo. Pero sólo en este sentido.
DH: Uds. han visto De la nuée à la resistance [Dalla nube alla resistenza, 1979]. Se acordarán del carro de bueyes, de ese plano que se prolonga después de los diálogos. Durante el montaje, no sabíamos si había que dejarlo o no, sabiendo muy bien al mismo tiempo que cuando se hace algo así, se corre un riesgo enorme. Sabemos positivamente que ciertos espectadores van a salir de la sala. Pero sabemos también que después, un día quizás, tal como ocurrió con los paseos en coche de Leçons d’histoire [Geschichtsunterricht, 1972], caeremos en la cuenta de que tiene por lo menos tanta fuerza como los diálogos.

TL: ¿Por qué lo que deciden dejar en un film se vuelve necesario?
DH: Lo que molesta a la gente, o la conmueve, es que sienten que es necesario sin saber por qué.
JMS: Vuelvo a Vittorini: gracias a un relato como el suyo, del que se elimina la mitad, existe la posibilidad de tener un film en que la ficción es muy fuerte, sin que el film caiga bajo el peso de la ficción. Y es que hacemos lo contrario de lo que hacen los productores cuando compran los derechos de un libro. No compran textos, compran un plot. Y a partir de ahí, llenan los agujeros. En este caso, la intriga está ahí, si hablamos de intriga en sentido corneilleano, pero ella no se come la materia del film. No está en primer plano, sino citada, sobreentendida. En este sentido, se trata de algo completamente diferente que Du jour au lendemain, que es más bien teatro.
DH: Lo de la intriga que está presente sin comerse el resto es también cierto de un film como La Nuit du carrefour, de Jean Renoir. Si el film es apasionante y al final no estamos completamente decepcionados, como suele ser el caso con casi todos los films policiales, es porque no está cerrado, concluido.

TL: Sobre este punto, el del relato, Sicilia! está más cerca de Non réconciliés, con sus diferentes estratos de tiempo y de relatos.
JMS: Le cedo la responsabilidad por esta asociación. Dije en 1965, a propósito de Non reconciliés, que me había arriesgado a hacer un film lacunar. Pero sólo se trataba de Non reconciliés. Sin querer hacer comparaciones, hay un film del que Sicilia! es pariente cercano, y al que retoma de alguna manera, aun intentando hacer otra cosa: Rapports de classes [Klassenverhältnisse, 1984]. Hay allí la misma voluntad de hacer un film histórico datado a partir de las imágenes. Además, Sicilia! y Rapports de classes tienen todavía otro punto en común. Rapports de classes debía ser un film de veinte minutos a partir del relato de Kafka, “El fogonero” (1), y Sicilia!, desde un principio, debía estar compuesta únicamente por la secuencia del vendedor de naranjas, que corresponde a una experiencia personal... Durante nuestro primer viaje a Sicilia, en 1971, o ‘72, en la época de Moïse et Aaron [Moises und Aaron, 1974], descubrimos cerca de un río, mientras paseábamos en el 2CV de la madre de Danièle, montañas de naranjas que habían tirado para evitar que bajara el precio. Es parecido a la historia que se escucha al comienzo de Kuhle Wampe, de Brecht, con el cual Sicilia! tiene también algo en común, sin que haya habido una decisión premeditada de nuestra parte. El otro título de Kuhle Wampe es A quién pertenece el mundo. Por eso nos divirtió bastante, luego, dar a Sicilia! el subtítulo Troppo male offendere il mondo [Está muy mal, ofender al mundo].

TL: Sicilia! me parece un film más amplio, más vasto en sus evocaciones que Du jour au lendemain [Von heute auf morgen, 1997]. Diría incluso, más generoso.
DH: Eso se debe sobre todo a que Du jour au lendemain se desarrolla en un solo lugar. Es como los barquinazos del autobús, se vuelven cada vez más molestos.
JMS: En Sicilia!, hay una realidad social completamente diferente. Du jour au lendemain pone en escena a una familia pequeño-burguesa construida a partir de dos máquinas culturales, la cantante y el cantor. En Sicilia!, ya no se trata de máquinas culturales. Los actores jamás habían puesto un pie en un teatro, y en la mayoría de los casos no sabían lo que es la gramática. Además, también sus oficios eran diferentes: había varios yeseros, un carrero, un vendedor de corbatas. En cuanto a la madre, ha tenido una vida muy parecida a la que se cuenta en el film. Cuando se ve lo que estas personas han logrado hacer en Sicilia!, se comprende hasta qué punto la polémica de Cannes (2) en torno a los actores no profesionales es vergonzosa. Los diarios italianos no han dejado de hablar de ello. Hay algo que volví a descubrir con ocasión de lo de Cannes: la prensa italiana se encuentra apenas un escalón abajo de la prensa del Doctor Goebbels y de Goering. Y esto se produjo en cuatro años. Se podían leer cosas como: “¿Qué pasa con estos films que han recibido premios y en los que participan actores profesionales, que de todos modos son malos, y no harán carrera en el cine?” Yo he leído eso en buenos periódicos democráticos, liberales y burgueses, que no son en todo caso revistas de proxenetas.
DH: Bresson trabajó de esta manera toda su vida. Jamás recurría a actores profesionales. Dreyer, a pesar de todo, utilizaba actores. Evidentemente, en esa época había menos argumentos lepenistas del tipo: “No van a hacer carrera, y les dan un premio, es lamentable.”
JMS: Viene de lejos. ¿Sabe por qué se doblan, los films italianos? Hubo una ley de Mussollini para la defensa de la lengua italiana. Ahí empezó a desarrollarse el parasitismo de los actores del doblaje. Y cuando doblaron a Toni, de Renoir, para la segunda cadena de TV, hace algunos años, hicieron doblar a los actores italianos que llegan al sur de Francia, con su acento, Toni en particular, por locutores de Milán que imitaban el acento siciliano, a fin de que no se los confundiese con los otros actores, que eran doblados al italiano. De repente, estos italianos que desembarcan en el sur de Francia se transforman en sicilianos llegando al norte de Italia. De esto son capaces en Italia... En su carácter de jefe de la Democracia Cristiana, Andreotti escribió una carta a Filmcritica, en la época en que la ésta no era más que una pequeña revista, para explicar que no había derecho de hacer películas como Ladrones de bicicletas, que la ropa sucia había que lavarla en casa.

TL: Para Uds., ¿hay alguna ventaja en rodar con actores no profesionales?
JMS: Renoir decía que podía hacer actuar a las escobas.
DH: Sin duda, hay menos necesidad de hacer trampas si se trabaja con actores no profesionales.
JMS: Es cierto, pero conocimos las peores dificultades con la madre de Sicilia!, con la que empezamos a trabajar tres meses antes que con los otros.
DH: Porque era ella la que nos hacía trampas a nosotros.
JMS: Cuando Danièle encontró en un cajón el texto que yo había escrito a partir de Conversaciones en Sicilia, en 1992, y me propuso hacer una película, yo respondí que sí, a condición de retomar, adaptándolo, el método de Antigone [1992], es decir, reclutar a los actores en el lugar de trabajo. El teatro de Butí nos había escrito, diez años antes, que les agradaría que pusiéramos en escena algo para ellos. Les propuse entonces a Vittorini, aclarando que eso nos permitiría preparar actores de origen siciliano para un film que queríamos rodar. Con suma gentileza, aceptaron enseguida.

TL: Para seguir comparando a sus dos últimos films... En Du jour au lendemain hay una suerte de disputa, una reacción violenta de la mujer ante la confusión en la que se encuentra su marido. Ella va a usar incluso los mismos medios espectaculares que la parte opuesta para reconquistar a su marido. En términos de esta reconquista se puede decir de ella que es una máquina de guerra. En Sicilia!, no hay que conformarse, como dice el Gran Lombardo, con ser buenos ciudadanos, hay que encontrar nuevos deberes para estar en paz con los hombres. No es indiferente, entonces, que el amor en Du jour au lendemain, se inscriba en el interior de la pareja y del discurso, mientras que en Sicilia!, nace de una aventura extraconyugal, de una subversión.
JMS: Esa mujer de Sicilia!, le puedo decir lo que es: una bruja. Él, el hijo, se comporta como todos los varones de la Inquisición. ¿Conoce Ud. exactamente el número de brujas quemadas por la Inquisición? Treinta mil. Más o menos como el número de comuneros fusilados. En Sicilia!, un hijo muy gentil se interesa por su anciana madre. Poco a poco, comienza a formular preguntas de inquisidor. La juzga, y luego se da cuenta de que ella tenía su libertad de mujer y que se decidió por ella. Se revela entonces una bruja. Esto es lo que la Inquisición no permite de ningún modo.
DH: En ese momento se comprende la cólera de ella cuando su hijo le dice: “¿Pero no te importaba entonces perder de vista la via férrea, no volver a escuchar el ruido del tren?”, y ella responde: “¿Qué importancia podía tener eso...?” Se entiende por qué. Es culpa de los empleados ferroviarios que han dejado pasar a los soldados, es entonces la culpa de esta vía férrea que la huelga haya sido aplastada.
JMS: La mujer de Du jour au lendemain es también una bruja a su manera, porque ella toma sobre sí todo el esfuerzo del mundo para llevar a cabo su maquinación. Pero es una pequeña burguesa que juega a la bruja, mientras que a la otra, un buen día, la golpea el rayo, por la llegada de aquel hombre. Esta esposa de obrero ferroviario, de repente, revela ser una bruja. Es algo muy distinto.

TL: Sicilia!, comparada con otros films suyos, es más laxa, como si a fin de cuentas debiera quedar la incertidumbre en cuanto a la moral, la lucha, la pareja. Es cuestión de movimientos, de impulsos políticos o amorosos que exceden lo que se podría decir de ellos y que, en última instancia, constituyen un riesgo del que no se sabe, para volver a lo que decían más arriba, si es respaldado por una gran prudencia. Se siente la extrema apertura del film, y que una verdad, cualquiera que sea, tiene dificultades para ser formulada, y no se formula más que al precio de múltiples contradicciones, a la manera de lo que dice la madre a propósito de su padre: “En su cabeza entraban mil cosas junta.”
JMS: Si Sicilia! parece más abierto que Du jour au lendemain, si en efecto lo es, es porque se trata de un film donde hay muchos espacios en blanco. Y hacer un film de poco más que una hora es un lujo. Voy a decirle de dónde viene todo esto. Es lo que yo llamo el efecto ciencia-ficción. Aquí también aparece el recuerdo de Non reconciliés: cuando, tras la revelación de las violencias que ha sufrido el joven Schrella por parte del ochenta por ciento de sus colegas, él y Robert se encuentran en el puente, este último le dice: “¿Qué eres? ¿Entonces eres judío?”. En este instante, en el film, no hay una pancarta donde se lea: “1934, comienzo del antisemitismo”. Es lo que yo llamo el efecto ciencia-ficción. ¿Qué mundo extraño es ése, en donde ser judío podría ser una explicación? Todo Sicilia! está construido de esta manera. Por ejemplo, una referencia explícita al fascismo cuando se oye en el tren a alguien que dice: “Ogni morto di fame è un uomo pericoloso”, podría haber dado lugar a otro film. Lo que estaba previsto era hacer como en el Kafka: evitar, a la inversa de lo que hace Forman en sus films de Hollywood, mostrar coches antiguos que permiten datar exactamente la época en que nos encontramos. Para Sicilia!, nos matamos buscando un vagón de tren que, sin ser el colmo de la comodidad, no fuese un vagón de época. Hicimos todo para que las imágenes no fuesen históricamente datables, y lo mismo con la ropa.

TL: El blanco y negro tiene un efecto ambiguo respecto de este efecto de ciencia-ficción.
JMS: Precisamente, el blanco y negro es una modificación de lo que acabo de describir. Aquí volvemos a encontrar la idea de la prudencia. Hay que ir muy lejos al hacer imágenes “modernas”, pero además es mejor hacerlas en blanco y negro, y no en color. Y cuando el Gran Lombardo, en el tren, desarrolla lo que él llama su utopía comunista, no es la gran utopía comunista europea, desarrollada por Hölderlin, al comienzo del último tercio de Empédocles. No es una utopía comunista universal, es una utopía comunista que no dice su nombre y que es muy particular, la utopía comunista de los hombres que se hicieron masacrar por Stalin en Ucrania. Una utopía comunista que busca algo, que sueña con algo y que dice: “Para llegar a lo que busco, daría todo lo que poseo, mis tierras y mi caballo.” Eso es ir muy lejos. Pero si precisamos que ese discurso viene después de 1917, que tiene como trasfondo la guerra de España, y anuncia ya el Macartismo y todo el resto, eso ya no conmueve de la misma manera. Eso es lo que yo llamo el efecto ciencia-ficción. Inversamente, si hubiéramos filmado el tren en colores, entonces el film se hubiera acercado más a nosotros.
DH: El momento mudo, al final de la escena del tren, termina de instalar el vértigo. Se vuelve completamente onírico. En colores, el cielo hubiera sido azul...
JMS: Azul, no exactamente, porque era gris... incluso si soplaba el sirocco. Pero es cierto que con el color, el paisaje no habría tenido ese aspecto lunar. El blanco y negro, aun corrigiendo el efecto ciencia-ficción, permite que las cosas se vuelvan más abstractas.

TL: Son entonces el blanco y negro, y el aspecto lacunar del relato los que dan a Sicilia! su gran apertura; hay también una indecibilidad del lugar, un movimiento continuo que hace que el film fluya, sin que nunca nada, tanto de los discursos, como de la percepción que tenemos de los personajes, concluya, se fije. Tomemos, por ejemplo, toda la escena entre Silvestro y su madre, sus desplazamientos, el hecho de que ocupen, cambiando roles, el mismo lugar y que el espacio esté muy entrecortado: la geometría del recinto no cesa de escapársenos. El otro día, viendo la casa de Butí, donde se rodó esta escena, me sorprendió su pequeñez, mientras que en Du jour au lendemain, el espacio me parecía más imaginable.
JMS: Seamos más concretos. Du jour au lendemain es simplemente un film con decorados, y por primera vez para nosotros, con decorados de estudio. Esto surge de un desafío, y del deseo de divertirnos rodando entre tres paredes, con una pared abierta, y la orquesta a la espalda. En consecuencia, es un film que dice lo que es. Sicilia! es un film que parte de Messina y que va hasta el centro de Sicilia. Eso es todo.

TL: Sin embargo, en Sicilia! nos encontramos, más a menudo de lo que es habitual en Uds., en ruptura con el espacio, con el fuera de campo, en el tren sobre todo, con el Gran Lombardo.
DH: Las tomas que aíslan al Gran Lombardo en el tren corresponden al momento en que él mismo se olvida de la gente que lo rodea. El riesgo entonces, es el de saber si cuando se lo muestre aislado en el tren se va a tener éxito en imponer el hecho de que olvida lo que se encuentra a su alrededor. Lo que queda del fuera de campo, y que es una cosa extremadamente fuerte que no se puede obtener en el teatro, son sus ojos que miran por el vidrio, y en los que se ve reflejada la luz de afuera.
JMS: Pero esta estrategia debería ser la de todos los cineastas, pequeños o grandes, jóvenes o viejos. Consiste en jugar con las distancias y el espacio. Nos rompimos la cabeza con ese compartimiento. Era cosa de tres centímetros, para aislarlos unos de otros. En realidad tuvimos que hacer un poco de trampa. Si hubiéramos elegido un compartimiento de segunda clase, no lo habríamos logrado. Con la primera clase, ganábamos quince centímetros que hacían posible la maniobra. Al comienzo, Willy Lubtchansky [el fotógrafo], quería que se levantara un asiento cada vez que la cámara cambiara de lugar. Yo me oponía. Terminamos filmando de un lado y de otro de las butacas, con la cámara a la espalda, salvo para el plano de los policías, en que la cámara estaba de pie al nivel de la puerta del compartimiento, y se giraba hacia el pasillo.
DH: Jean-Marie se había obstinado, y tenía razón. Digamos que el material es mucho más fuerte porque el tren, Willy y la cámara, todos se mueven al mismo tiempo.
JMS: Cuando se había elegido un objetivo, ya no se podía mover un pelo. No teníamos zoom, y los objetivos eran de distancia focal fija. Cuando elegimos una posición estratégica, nos vimos en necesidad de hacer cosas que nunca habíamos hecho. Hace treinta años me habría horrorizado hacer un primer plano como el del Gran Lombardo. La primera vez que usé un objetivo de 100, fue para La mort d’Empédocle [Der Tod des Empedokles, 1987]. Antes de eso, jamás había ido más allá de 75. Volviendo a la casa, lo que me decidió a rodar allí fue la pared negra en el interior de la chimenea. Esta casa de Toscana estaba habitada durante los dos meses de ensayos del teatro. Habíamos hecho muchas exploraciones en Sicilia, visto muchas casas. Finalmente decidimos filmar en ésta. El muro interior de la chimenea es la única parte de la casa que tiene tres siglos. Allí jugamos un juego todavía peor que en el tren. Hay dos posiciones de cámara en toda esta secuencia. Hay una en que la vemos a él en la puerta, y a ella en la chimenea, posición que se conserva a continuación para filmarlos a ambos sentados a la mesa y junto a la ventana. La cámara está cerca de la chimenea. Y ahí, esto se vuelve apasionante porque todos los planos son resultado de un espacio que no es de goma. La gente se da cuenta de que no intentamos corregir las perspectivas para hacer un plano un poco más bello. Se puede jugar con las distancias focales, pero la perspectiva es justa, siempre la misma. Es lo que habíamos hecho con el Kafka, incluso si era un poco más complicado, porque había que ser solidario con Karl Rossmann y, durante los procesos, estar un poco más cerca de él que de los otros. Si uno cambia incesantemente la perspectiva para hacer tal o cual plano, un primer plano, por ejemplo, entonces ese primer plano no tiene ningún interés.

TL: En Rapports de classes, se asistía más, efectivamente, a una guerra de trincheras, campo contra campo, bloque explotador contra bloque explotado. En Sicilia!, la dialéctica, el conflicto, ha dejado lugar a la evocación de los recuerdos y del mundo, hasta aquella poética y melancólica de la última secuencia. Es cuestión de satisfacción, de dignidad, de Dios...
JMS: Es un film de viejos, eso es todo; y un film aireado. Un film con aire, donde el espectador o el ciudadano tiene más posibilidades de existir, de respirar, que en los precedentes... Pero no hay más que la dignidad del afilador, los cañones, etc. Eso termina incluso con la dinamita, y no es poco, sobre todo si se piensa en algunos acontecimientos recientes. Y antes de la dinamita, hay cannoni, cannoni, y aún antes es cuestión de fusiles y martillos. Y después de los cañones y la dinamita, hay una contradicción más. El afilador se vuelve a poner el sombrero, saluda y tenemos la impresión de ver a dos personajes diciéndose adiós desde una punta a la otra de un abismo invisible... casi dos personajes fordianos. Entonces se ponen a hablar de curación y enfermedad. Lo interesante es lo que se siente en ese momento. Si se llega a un punto en que la humanidad tiene necesidad de dinamita, quiere decir que está enferma. Entonces haría falta una convalescencia. Para mí, eso, es Beethoven el que lo dice... Lo que dice el Gran Lombardo, son patrañas de italiano que, hace veinte años, me habrían hecho empalidecer de cólera. Pero esta vez me lo tomé en serio. Me dije: “He aquí uno que busca algo.” Y como estaba en estilo indirecto en el libro, yo lo puse en estilo directo, lo que lo hace más chocante y fuerte. También está el que afila los cuchillos, que dice: “Troppo male offendere il mondo.” A los dieciocho años, de haber leído eso, me habría encogido de hombros. Pero aquí, de golpe, la cosa toma peso. Es en este sentido que digo también que se trata de un film de viejos. Un film que se podría haber llamado Después del diluvio.

TL: Hay otros films que se sitúan después del diluvio y que, del mismo modo que Sicilia!, avanzan al paso de memorias individuales o colectivas, de sus contradicciones, y que circunscriben un extraño espacio del presente a través del pasado. Pienso en Hiroshima, mon amour, por ejemplo, y en otros films de Resnais.
JMS: Consideremos eso como un cumplido de su parte, y seguramente que lo es. Pero hablemos más bien de uno de los hombres del cine contemporáneo que yo más amo, Otar Ioseliani. Me gustó mucho La chasse aux papillons, pero me parece que su último film es un film blindado por el relato, el sentido, una voluntad de no dejar agujeros ni grietas. Qué quiere que le diga, el cine no es un lenguaje. Rivette y Moullet, hace ya mucho, reaccionaban contra la escritura pornográfica cinematográfica. Por mi parte, yo llegué a la misma conclusión. El cine no es un lenguaje, en el sentido en que Lenin decía que la política burguesa era pornografía. Los films referenciales, el cine que se convierte en su propio objeto, es algo espantoso.

TL: Sicilia! es tanto más bello, fuerte, cuanto que sus diálogos son simples, y sin embargo, densos. Eso sin duda es lo que se encuentra en el origen del impacto y la sorpresa que produce. Conciso y simple a la vez.
JMS: Es muy difícil escribir textos como éstos. Es lo que respondí a Otar, cuando me decía, hace ya diez años: “¿Pero por qué no escribes tus propios libros?”. Prefiero ir a buscarlos a otro lado, porque sé que no soy capaz de textos tan ricos; sé que éstos, en cambio, me ofrecerán resistencia, y que tendré el coraje de imponerlos a actores durante dos, tres, cuatro meses.

TL: ¿Cuál es el sentido de esta réplica enigmática del afilador: “Se confunden a veces las pequeñeces del mundo con las ofensas al mundo”?
JMS: Piccolezze, ¡las pequeñas cosas del mundo!
DH: ¡Las pequeñeces [petitesses]! El afilador, que habría debido dar este servicio gratuitamente por el placer que tiene al conocer a Silvestro, pide disculpas por haber intentado sacarle dos centavos de más. Dice a Silvestro: “¿Qué es este alguien, es decir yo? ¿No es un hombre que ofende al mundo?”. Y el otro dice: “Ooh”, con una sonrisa que quiere decir: “No exageres, de todos modos no es tan grave.” Entonces le dice el afilador: “Gracias, amigo mío, a veces se confunden las pequeñeces del mundo con las ofensas hechas al mundo.”
JMS: Además, hay que decir que la palabra piccolezze está bien elegida, porque en italiano también es un sustantivo, aun si resulta un poco forzado. Sin duda, si hubieramos traducido piccolezze por pequeñas cosas [petites choses], habríamos traducido inexactamente.
DH: No, no es cierto, eso corresponde a la pequeñez de espíritu. Alto, en este dominio no me ganarán.
JMS: Bueno... Quisiera de todos modos agregar algo a propósito de esta cosa [mostrando la gacetilla de prensa], de la que no estoy del todo disconforme. Hay tres textos de Vittorini. Hay uno, muy corto, sobre Hölderlin, otro todavía más corto sobre el color en el cine, y el último, más largo, sobre Dreyer. Quiero que se sepa que antes de hacer el film, incluso durante el montaje, ignoraba completamente la existencia de estos textos. Al César lo que es del César: fue François Albéra quien me los envió. ¿Por qué son interesantes? Se ve que Vittorini se interesaba por Hölderlin, lo que yo jamás habría imaginado. Nos enteramos también que, a propósito de un film de Mamoulian, escribió: “¿Podrá alguna vez el color reemplazar las escalas innumerables del blanco y negro?”. Es importante. En lo que concierne al texto sobre Dies Irae, lo agregué por una razón simple: a causa de la bruja. Quiero que se sepa también que jamás pensé, durante el trabajo en Sicilia!, en Dies Irae. Pero tengo que reconocer que, cuando llegué a París, en 1954, el film que mejor conocía, fuera de dos films de Grémillon, dos films y medio de Renoir, y tres films de Bresson, era Dies Irae, que había visto al menos siete veces en copia de 16mm, en mi altillo. Por lo tanto, no será de sorprender entonces, si hay algo en la escena entre madre e hijo que recuerde a Dies Irae. Un film que se ve a esa edad deja huellas. Por otra parte, quisiera también que a propósito de Sicilia! se citara a Pagnol. Me gustaría, en la medida en que no conozco realmente a Pagnol. Pero descubrí un día que, en él, las imágenes no existen. Hace un trabajo enorme con el sonido, cosa de la que además se vanagloriaba. Todo el mundo decía: “Ya lo ve, cuando el sonido es justo, las imágenes son justas.” Pero no es cierto. Pagnol se encerraba en su camión de sonido, y de hecho, no quería ver nada. Naturalmente, no es por eso que las imágenes no existen, pero de hecho... no existen. Hay que reconocer también que, incluso si hay algo en común entre Toni y Pagnol, políticamente, Renoir y él no tienen nada que ver. Pagnol es un poco lamentable. Bazin admiraba Manon des sources a causa de los grandes discursos del cura. Jamás volví a ver esa película, habría que ver si ha resistido la prueba del tiempo. Hay por ejemplo dos cineastas que yo admiraba enormemente siendo joven, y que hoy en día me irritan: Murnau y Rossellini. Su cine termina por morderse la cola.

TL: Ud. habla a menudo de Dreyer, Bresson, Renoir, Ford, Stroheim, Lubitsch o Chaplin, pero bastante poco de directores como Hitchcock, Antonioni, Vertov u Ozu. ¿Debemos suponer que no siente gran simpatía por ellos?
JMS: No fue con Bresson precisamente con quien aprendí cosas sobre el espacio; fue con Hitchcock. Cuando, durante un diálogo, hay un primer plano, y luego un contrapicado en primer plano, nunca es un capricho. Digo esto aun cuando las historias de Hitchcock y su costado foto-novela han terminado lentamente por cansarme. El primer texto crítico que escribí tenía sesenta páginas y era sobre Cronaca di un amore, de Antonioni. Era sobre el film, sin ser verdaderamente sobre el film; partía de El adolescente, de Dostoievsky, y de The End of the Affair, de Graham Greene. Se lo mostré a Bazin, que me dijo que no era seguro que el film soportara esa pirámide. Por mi parte, me parecía que era un cine sintético y nuevo, en particular en lo que toca al espacio. Bazin me envió con Marker, a Esprit, para intentar publicar ese texto. Luego me fui a Alemania, y lo quemé. También había escrito un texto sobre Rear Window, que Doniol, Bazin y los otros habían preparado para su publicación. Ya había leido las pruebas, cuando de pronto decidieron que el número especial de los Cahiers sobre Hitchcock llegaría sólo hasta el film anterior, Dial M for Murder. Era apenas un pequeño análisis de las relaciones espaciales de Rear Window. De modo que, si aprendí algo sobre el espacio, viene también de ahí. A Ozu, lo descubrí muy tarde. Cuando llegamos a Berlín con Non reconciliés, un viejo alemán me decía siempre: “¡Ozu, Ozu!”. Yo le decía que no conocía a Ozu, y le replicaba: “¡Mizoguchi, Mizoguchi!”, porque había visto sus films antes de dejar París, y conocía bien L’Intendant Sansho, O’haru, y La rue de la honte. ¿Sabe lo que dijo Mizoguchi de Ozu? Es el mejor cumplido que un cineasta puede hacer a otro. Respondiendo a un hombre que criticaba a Ozu, Mizoguchi dijo: “Ah, sí, pero Ozu, lo que hace él es quizás más difícil que lo que yo hago.” El otro bello cumplido, lo hizo John Ford. Un periodista norteamericano le preguntó cuáles eran los cineastas que admiraba. Ford: “Renoir, por ejemplo.” Y el otro dice: “Ah, Renoir, La grande illusion, pero, ¿qué films de Renoir?”. – “¡Todos!” Naturalmente que no los había visto todos. Para volver a Mizoguchi, si tengo algo en común con él, es una cierta cólera que no se encuentra en Ozu. Mizoguchi es, en todo caso, el mejor cineasta marxista. Hay otros films que admiro enormemente, Monsieur Verdoux, por ejemplo, y que por fuerza han dejado huellas. En Limelight, durante el gran número con Buster Keaton, al cabo de algunos segundos, Chaplin corta el sonido. Al comienzo hay aplausos en off que son perfectamente cinematográficos, reconstruidos, inventados. Pero Chaplin tenía tal experiencia de las salas y de los públicos que, bruscamente, corta todo. Y cada vez, la sala de cine toma el relevo.

Notas:
1) “El fogonero”, inicialmente un relato independiente, pasó a ser luego el primer capítulo de la novela América. [T]
2) Se refiere probablemente a la polémica que produjo en Cannes 1999 la entrega de premios por mejor interpretación masculina y femenina, respectivamente, a Emmanuel Schotté y Séverine Caneele, los protagonistas del film L’Humanité, de Bruno Dumont. [T]

Filmografia de Jean-Marie Straub y Daniele Huillet:
Machorka-Muff (corto, 1963)
Nicht Versöhnt oder es hilft nur Gewalt wo Gewalt herrscht (1965)
Der Brautigam, die Komödiantin und der Zuhalter (1968)
Chronik de Anna Magdalena Bach (1968)
Les yeux ne veulent pas en tout temps se fermer ou peut-être qu’un jour Rome se permettra de choisir à son tour (1970)
Othon (1971)
Geschichtsunterricht (1972)
Einleitung zu Arnold Schönberg’s Begleitmusik zu einer Lichtspielszene (1973)
Moses und Aaron (1975)
Fortini Cani (1976)
Toute révolution est un coup de dès (1977)
Dalla nube alla resistenza (1979)
Trop tôt, trop tard (1981)
En rachachant (1982)
Klassenverhältnisse (1984)
Der Tod des Empedokles (1987)
Schwarze Sünde (1989)
Cézanne: Conversation avec Joachim Gasquet (1989)
Antigone (1992)
Lothringen! (1994)
Von heute auf morgen (1997)
Sicilia! (1998)

Otros films citados
* Charles Chaplin (1889-1977):
Monsieur Verdoux, 1947
Limelight [Candilejas], 1952

* Jean Renoir (1894-1979)
La Nuit du carrefour, 1932
Toni, 1935
La grande illusion [La gran ilusión], 1937

* Marcel Pagnol (1895-1974)
Manon des sources [Manon del manantial], 1952

* Carl Theodor Dreyer (1889-1968)
Vredens Dag [Dies Irae], 1943

* Kenji Mizoguchi (1898-1956)
Saikkaku ichigai onna [Vida de O’haru], 1952
Sansho dayu [El intendente Sansho], 1954
Akasen chitai [La calle de la vergüenza], 1956

* Alfred Hitchcock (1899-1980)
Dial M for Murder [La llamada fatal/ El crimen perfecto], 1954
Rear Window [La ventana indiscreta], 1954

* Vittorio de Sica (1902-1974)
Ladri di biciclette [Ladrones de bicicletas], 1949

* Michelangelo Antonioni (1912-)
Cronaca di un amore [Crónica de un amor], 1950

* Alain Resnais (1922- )
Hiroshima, mon amour, 1959

* Otar Ioseliani (1934- )
La chasse aux papillons, 1992

22 oct. 2008

DIÓGENES LAÉRCIO

Então, o mais terrível dos males, a morte, não é nada para nós, porque quando estamos vivos é a morte que não está presente; quando a morte está presente, nós não mais estamos. A morte, então, não é nada, nem para os vivos, nem para os mortos, já que para aqueles ela não existe, e estes não mais estão aqui. Contudo, a maioria, no confronto da morte, ora foge dela como se fosse o maior dos males, ora a procura como solução dos males da vida.
(DIÓGENES LAÉRCIO X, Carta a Meneceu, 125-126)

20 oct. 2008

Seis ou treze coisas que eu aprendi sozinho.

Com cem anos de escória uma lata aprende a rezar.
Com cem anos de escombros um sapo vira árvore e cresce por cima das pedras até dar leite.
Insetos levam mais de cem anos para uma folha sê-los.
Uma pedra de arroio leva mais de cem anos para ter murmúrios.
Em seixal de cor seca estrelas pousam despidas.
Mariposas que pousam em osso de porco preferem melhor as cores tortas.
Com menos de três meses mosquitos completam a sua eternidade.
Um ente enfermo de árvore, com menos de cem anos, perde o contorno das folhas.
Aranha com olho de estame no lodo se despedra.
Quando chove nos braços da formiga o horizonte diminui.
Os cardos que vivem nos pedrouços têm a mesma sintaxe que os escorpiões de areia.
A jia, quando chove, tinge de azul o seu coaxo.
Lagartos empernam as pedras de preferência no inverno.
O vôo do jaburu é mais encorpado do que o vôo das horas.
Besouro só entra em amavios se encontra a fêmea dele vagando por escórias…
A quinze metros do arco-íris o sol é cheiroso.
Caracóis não aplicam saliva em vidros; mas, nos brejos, se embutem até o latejo.
Nas brisas vem sempre um silêncio de garças.
Mais alto que o escuro é o rumor dos peixes.
Uma árvore bem gorjeada, com poucos segundos, passa a fazer parte dos pássaros que a gorjeiam.
Quando a rã de cor palha está para ter — ela espicha os olhinhos para Deus.
De cada vinte calangos, enlanguescidos por estrelas, quinze perdem o rumo das grotas.
Todas estas informações têm soberba desimportância científica — como andar de costas.

Erro de português

Quando o português chegou
Debaixo de uma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português.

Carlos Drummond de Andrade

Por um semrpe amigo: André

Igual-desigual

Eu desconfiava:
Todas as histórias em quadrinhos são iguais.
Todos os filmes norte-americanos são iguais.
Todos os filmes de todos os países são iguais.
Todos os best-sellers são iguais.
Todos os campeonatos nacionais e internacionais de futebol são iguais.
Todas as mulheres que andam na moda são iguais.
Todos os partidos políticos são iguais.
Todas as experiências de sexo são iguais.
Todos os sonetos, gazéis, virelais, sextinas e rondós são iguais e todos, todos
Os poemas em verso livre são enfadonhamente iguais.
Todas as guerras do mundo são iguais.
Todas as fomes são iguais.
Todos os amores iguais, iguais, iguais.
Iguais todos os rompimentos.
A morte é igualíssima.
Todas as criações da natureza são iguais.
Todas as ações, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais.
Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem,
Bicho ou coisa.
Ninguém é igual a ninguém.
Todo ser humano é um estranho
Ímpar.

Carlos Drummond de Andrade

18 oct. 2008

Para do André...

Para,dó André, te vejo, mexendo por ai...
movimentando-se
Aja tempo para dizer que ja passou,passado voado por aqui...
AHHHHHHH André se o passado é no presente que vai ser
Filmar ontem e amanhã, nunca hoje.
Não temos medo do erro, estamos mergulhados no delirio...
Um caralho duro no cu de tais sertões brochados.
Falta ritmo... Falta tudo... HAHAHAHAHAHAH
Voar Greenawayzado
Da percepção aos perceptos, da afecção aos afectos...
Quase morri a menos de trinta e duas horas atras...
Nos encontramos na varanda com as crianças...
Sou uma gaivota, não. não é isso
Horror , Horror, frio, frio, deserto, deserto
Ainda estou parado?

Pithecanthropus Erectus

a Estevão, meu calomelano por André Felix

Era das 5 e meia da tarde que ele sentiria mais falta. A hora em que as imagens venciam as coisas. A hora do fogo. Sentiu estar com um pouco de frio, e quase riu ao lembrar Foucault...”o mais profundo é a pele”. Pensou que o humor negro sempre fora um tipo elevado de nos lembrar de quão patético é o horror tragédia.
Aos poucos ia se incomodando com a sua roupa que estava ensopada e ele não trocava. Olhou pelo retrovisor e viu sua versão de “Las Fuerzas Estrañas” estava aberta no meio da estrada. Reconheceu pela capa vermelha. Por momentos pensou se tratar do livro de Contos de Voltaire. Correu com os olhos e viu a sua escultura miniatura de Rodin em pedacinhos verdes nas extremidades ficavam esbranquiçadas. Se excitou em ver o quão lindos ficavam os pedaços verdes da estátua compostos com os pedaços de vidro do parabrisa nos cinzas...Certamente sentiria falta das 5 e meia da tarde.
Esqueceu que gravara um dia antes “My Favorite Things” com a viril execução do Coltrane naquela compilação. Era um disparate, principalmente por encaixá-la entre “Singhin and Cryin” e “It Never Entered My Mind”. O plástico do carburador entre seus dedos se moveu e interrompeu seus pensamentos. Não gritou. Não atrapalharia aquele espetáculo de montanhas douradas e delírios escarlate.
Por mais que tivesse parte do cambio de distribuição enfiado em seu ventre, sentia fome. Sentia também a falta de Carla. Lembrou que ela havia ensaiado uma dublê de Ella Fitzgerald cantando “So In Love”. Sentiu vontade de rasgar seu Suéter rubro, antes que ela pudesse inspirar. Entre uma nota e outra ele a amaria. Dormiria por dias no intervalo da voz de Carla, e transformaria aquele canto em lágrimas, em céus abertos, em tédio, em cabritos tocando violino. Fechava os olhos e podia sentir os salgados e ácidos do seu corpo...logo após, o gosto de sangue.
Conseguiu mexer levemente a cabeça para a direita e observou q a porta estava aberta. Viu o all star de lona branca...e um pouco do calcanhar apoiados no banco do carona. Era de Carla. Olhou pra frente. Era como ela sempre o repreendia a não ficar olhando pra ela enquanto dirigia. Não importa se foi assim.
Sempre sentiria saudades das 5 e meia da tarde, e se sentia seguro porquê Carla estava lá. Detestava não saber onde ela estava. Não queria ser seu único amor, só queria ser o primeiro. Assistiu com certo tédio os violetas tomando conta da paisagem. Ouviu som subir em fade rapidamente. Tentou virar pra ver o que era. No som “Don’t think Twice, Is All Right”...ao tentar se virar, paladar e olfato se fundiram. Nenhum sentido respondia mais por si. Todo tempo era urgente...e logo depois grandes demoras.
Sentiria muitas saudades, muitas, das 5 e meia da tarde. Não conseguia falar, mas cantava para Carla os últimos versos de “Two Of Us”

“…We're on our way home, We're on our way home, We're going home…”

Definitvamente sentiria saudades das 5 e meia da tarde, sentiria porque era a hora da sua morte.

The Man Who Shot Liberty Vance

The Man Who Shot Liberty Vance

Tom Doniphon-John Ford
Quem são vocês?
The Searchers André-l-ico,indo...
temos uma vaga lembrança, na;
Menina que nunca existiu...
dá-sustenido-atrasado!
Não temos mais nada...
(...)
O deserto consumiu...

Cassandros violentos.

Rato na cozinha, matilha! Ben;
Ruas curvadas em paralelepipedos;
Frio que corta-sangra os labios...
Chove! É verão, erva-cidreira,
hoje já passou...
temos na incerteza mil caminhos.
Só Deus sabe onde esta o padre...

17 oct. 2008

Godard



16 oct. 2008

Carlos Drummond de Andrade

AUSÊNCIA

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
Que rio e danço e invento exclamações alegres,
Porque a ausência, essa ausência assimilada,
Ninguém a rouba mais de mim.

Carlos Drummond de Andrade

14 oct. 2008

Listinhas

ASIER ARANZUBIA COB
1. Death Proof (Quentin Tarantino)
2. La hamaca paraguaya (Paz Encina)
3. Lady Chatterley (Pascale Ferran)
4. María Antonieta (Sofía Coppola)
5. El libro negro (Paul Verhoeven)
6. El romance de Astrea y Celadon (Eric Rohmer)
7. Last Days (Gus Van Sant)
8. Die Stille vor Bach (Pere Portabella)
9. Naturaleza muerta (Jia Zhang-ke)
10. Los testigos (André Techiné)

FRAN BENAVENTE
1. Inland Empire (David Lynch)
2. Naturaleza muerta (Jia Zhang-ke)
3. Banderas de nuestros padres (Clint Eastwood)
4. Zodiac (David Fincher)
5. Cartas desde Iwo Jima (Clint Eastwood)
6. Promesas del Este (David Cronenberg)
7. Death Proof (Quentin Tarantino)
8. El asesinato de Jesse James... (Andrew Dominik)
9. "A través del espejo" Cap. 23 Temp. 3 "Perdidos"
10. Election 2 (Johnnie To)

ROBERTO CUETO
1. Death Proof (Quentin Tarantino)
2. Zodiac (David Fincher)
3. Election 2 (Johnnie To)
4. El bosque del luto (Naomi Kawase)
5. María Antonieta (Sofia Coppola)
6. The Host (Bong Joon-ho)
7. Inland Empire (David Lynch)
8. Takeshi's (Takeshi Kitano)
9. Naturaleza muerta (Jia Zhang-ke)
10. Promesas del Este (David Cronenberg)

CARLOS F. HEREDERO
1. Naturaleza muerta (Jia Zhang-ke)
2. El romance de Astrea y Céladon (Eric Rohmer)
3. El bosque del luto (Naomi Kawase)
4. Cartas desde Iwo Jima (Clint Eastwood)
5. Maria Antonieta (Sofia Coppola)
6. La soledad (Jaime Rosales)
7. Luces del atardecer (Aki Kaurismäki)
8. Lady Chatterley (Pascale Ferran)
9. Inland Empire (David Lynch)
10. Promesas del Este (David Cronenberg)

JOSÉ ANTONIO HURTADO
1. Cartas desde Iwo Jima (Clint Eastwood)
2. Naturaleza muerta (Jia Zhang-ke)
3. Luces del atardecer (Aki Kaurismäki)
4. Inland Empire (David Lynch)
5. Banderas de nuestros padres (Clint Eastwood)
6. En la ciudad de Sylvia (José Luis Guerín)
7. Redacted (Brian de Palma)
8. Los climas (Nuri Bilge Ceylan)
9. Las alas de la vida (Antoni P. Canet)
10. Ratatouille (Brad Bird y Jan Pinkava)

EULALIA IGLESIAS
1. Naturaleza muerta (Jia Zhang-ke)
2. Last Days (Gus Van Sant)
3. Lady Chatterley (Pascale Ferran)
4. Belle Toujours (Manoel de Oliveira)
5. Maria Antonieta (Sofia Coppola)
6. Promesas del Este (David Cronenberg)
7. Death Proof (Quentin Tarantino)
8. El sueño de Casandra (Woody Allen)
9. Inland Empire (David Lynch)
10. The Host (Bong Joon-ho)

JOSÉ MANUEL LÓPEZ FERNÁNDEZ
1 Naturaleza muerta (Jia Zhang-Ke)
2 El bosque del luto (Naomi Kawase)
3 El romance de Astrea y Céladon (Eric Rohmer)
4 Death Proof (Quentin Tarantino)
5 Election 2 (Johnnie To)
6 Last Days (Gus Van Sant)
7 Belle Toujours (Manoel de Oliveira)
8. Takeshis' (Takeshi Kitano)
9. La hamaca paraguaya (Paz Encina)
10. The Host (Bong Joon-ho)

CARLOS LOSILLA
1. Inland Empire (David Lynch)
2. Zodiac (David Fincher)
3. El asesinato de Jesse James... (Andrew Dominik)
4. Promesas del Este (David Cronenberg)
5. En la ciudad de Sylvia (José Luis Guerín)
6. Naturaleza muerta (Jia Zhang-ke)
7. Banderas de nuestros padres (Clint Eastwood)
8. Cartas desde Iwo Jima (Clint Eastwood)
9. Last Days (Gus Van Sant)
10. Keane (Lodge Kerrigan)

12 oct. 2008

OS HOMENS OCOS

Para: Betania

"A penny for the Old Guy"
(Um pêni para o Velho Guy)

Nós somos os homens ocos
Os homens empalhados
Uns nos outros amparados
O elmo cheio de nada. Ai de nós!
Nossas vozes dessecadas,
Quando juntos sussurramos,
São quietas e inexpressas
Como o vento na relva seca
Ou pés de ratos sobre cacos
Em nossa adega evaporada

Fôrma sem forma, sombra sem cor
Força paralisada, gesto sem vigor;

Aqueles que atravessaram
De olhos retos, para o outro reino da morte
Nos recordam - se o fazem - não como violentas
Almas danadas, mas apenas
Como os homens ocos
Os homens empalhados.

II

Os olhos que temo encontrar em sonhos
No reino de sonho da morte
Estes não aparecem:
Lá, os olhos são como a lâmina
Do sol nos ossos de uma coluna
Lá, uma árvore brande os ramos
E as vozes estão no frêmito
Do vento que está cantando
Mais distantes e solenes
Que uma estrela agonizante.

Que eu demais não me aproxime
Do reino de sonho da morte
Que eu possa trajar ainda
Esses tácitos disfarces
Pele de rato, plumas de corvo, estacas cruzadas
E comportar-me num campo
Como o vento se comporta
Nem mais um passo

- Não este encontro derradeiro
No reino crepuscular

III

Esta é a terra morta
Esta é a terra do cacto
Aqui as imagens de pedra
Estão eretas, aqui recebem elas
A súplica da mão de um morto
Sob o lampejo de uma estrela agonizante.

E nisto consiste
O outro reino da morte:
Despertando sozinhos
À hora em que estamos
Trêmulos de ternura
Os lábios que beijariam
Rezam as pedras quebradas.

IV

Os olhos não estão aqui
Aqui os olhos não brilham
Neste vale de estrelas tíbias
Neste vale desvalido
Esta mandíbula em ruínas de nossos reinos perdidos

Neste último sítio de encontros
Juntos tateamos
Todos à fala esquivos
Reunidos na praia do túrgido rio

Sem nada ver, a não ser
Que os olhos reapareçam
Como a estrela perpétua
Rosa multifoliada
Do reino em sombras da morte
A única esperança
De homens vazios.

V

Aqui rondamos a figueira-brava
Figueira-brava figueira-brava
Aqui rondamos a figueira-brava
Às cinco em ponto da madrugada

Entre a idéia
E a realidade
Entre o movimento
E a ação
Tomba a Sombra
Porque Teu é o Reino

Entre a concepção
E a criação
Entre a emoção
E a reação
Tomba a Sombra
A vida é muito longa

Entre o desejo
E o espasmo
Entre a potência
E a existência
Entre a essência
E a descendência
Tomba a Sombra
Porque Teu é o Reino
Porque Teu é
A vida é
Porque Teu é o

Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Não com uma explosão, mas com um suspiro.

Classico: Eu levo o seu coração comigo

Dedicado: Rodrigo...

eu levo o seu coração comigo (eu o levo no

meu coração) eu nunca estou sem ele (a qualquer lugar
que eu vá, meu bem, e o que que quer que seja feito
por mim somente é o que você faria, minha querida)

tenho medo

que a minha sina (pois você é a minha sina, minha doçura) eu não quero
nenhum mundo (pois bonita você é meu mundo, minha verdade)
e é você que é o que quer que seja o que a lua signifique
e você é qualquer coisa que um sol vai sempre cantar

aqui está o mais profundo segredo que ninguém sabe
(aqui é a raiz da raiz e o botão do botão
e o céu do céu de uma árvore chamada vida, que cresce
mais alto do que a alma possa esperar ou a mente possa esconder)
e isso é a maravilha que está mantendo as estrelas distantes

eu levo o seu coração ( eu o levo no meu coração)

8 oct. 2008

Dando volta para o sul...

Vou pra Porto Alegre, tchau!

7 oct. 2008

A igualdade é vermelha meio verde na manhã de um coração atordoado

**************************************Para .....

Nos ventos uivantes da manhã
(que)...imando
doura o silêncio de uma canção
pelas janelas da minha face
abraço o sol entre flores-verde-claro
(que)...imando
colore os jardins da solidão,
entre carinhos imaginários
molho as pétalas do calor-amor
Dionísio
(que)...imando
dança nas cirandas de um coração;
(que)...imando
atordoado!

Estevão Mabilia Meneguzzo

Petunias nos mares vermelhos do teu coração

Mussete and Drums

Voz borboleta-verde
Estendo as nadadeiras
mergulho pelo grito agudo
pouso no ar-suave do sem rosto
Elizabeth Fraser petuniando passaralhos
Se ousa pensar em destino é o inferno
Na sombra do vulcão
artaud, lautreamont, kinski, bacon
Bosch, Monk, Schiele, Wilson
A baleia, lona, azul, verde, amarelo...
- Não goza meu amor!
Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh

Estevão

5 oct. 2008

O Sonho * Henri Bergson

Conferência feita no Instituto Geral Psicológico em 26 de março de 19011

O Instituto Psicológico me convidou para tratar de um assunto tão complexo, o qual suscita tantos problemas, alguns psicológicos, outros fisiológicos e mesmo metafísicos, assunto que requereria tão longos desenvolvimentos – e temos tão pouco tempo – que peço a permissão para suprimir todo preâmbulo, afastar o acessório e me colocar logo no coração da questão.

Eis, pois, um sonho. Vejo toda espécie de objetos desfilar diante de mim; nenhum deles existe efetivamente. Creio ir e vir, passar por uma série de aventuras, enquanto estou deitado em minha cama, bem tranqüilamente. Escuto-me falar e ouço o que me é respondido; todavia estou só e não digo nada. De onde vem essa ilusão? Por que se percebem pessoas e coisas como se elas estivessem realmente presentes?

Mas, não há absolutamente nada no sonho? Uma certa matéria sensível não é oferecida à vista, ao ouvido, ao tato, etc., no sono como o é na vigília?

O PAPEL DAS SENSAÇÕES VISUAIS

Fechemos os olhos e vejamos o que acontece. Muitas pessoas dirão que não acontece nada: é que elas não olham atentamente. Em realidade, percebem-se muitas coisas. Inicialmente um fundo negro. Depois manchas de diversas cores, às vezes pálidas, às vezes de um brilho singular. Essas manchas se dilatam e se contraem, mudam de forma e de nuança, estendem-se umas sobre as outras. A mudança pode ser lenta e gradual. Às vezes acontece com extrema rapidez. De onde vem essa fantasmagoria? Os fisiologistas e os psicólogos têm falado em "poeira luminosa", em "espectros oculares", em "fosfenas". Eles atribuem essas aparências às leves modificações que se produzem sem cessar na circulação retiniana, ou ainda à pressão que a pálpebra fechada exerce sobre o globo ocular, excitando mecanicamente o nervo óptico. Mas pouco importa a explicação do fenômeno e o nome que se lhe dê. Ele se encontra em todo mundo, e fornece, sem nenhuma dúvida, a matéria na qual esculpimos muitos de nossos sonhos.

Alfred Maury e, na mesma época, o marquês dHervey de Saint-Denis, já tinham observado que essas manchas coloridas de formas moventes podem se consolidar no momento em que se adormece, desenhando assim os contornos dos objetos que irão compor o sonho. Mas a observação era um tanto suspeita porque provinha de psicólogos semi-adormecidos. Um filósofo americano, G.T. Ladd, professor na Universidade de Yale, imaginou então um método mais rigoroso, mas de uma aplicação difícil, porque exige uma espécie de treinamento. Consiste em manter os olhos fechados quando se desperta, e em reter durante alguns instantes o sonho que vai se desvanecer do campo da visão e logo também, sem dúvida, da memória. Nesse caso, vêem-se os objetos do sonho se dissolverem em fosfenas, e se confundirem com as manchas coloridas que o olho percebia realmente quando as pálpebras estavam fechadas. Lê-se, por exemplo, um jornal: eis o sonho. Desperta-se e do jornal cujas linhas se esfumam resta uma mancha branca com vagos riscos negros: eis a realidade. Ou ainda, no sonho passeamos em alto mar; o oceano desvela, a perder de vista, suas ondas cinzentas coroadas com uma espuma branca. Ao despertar, tudo se perde em uma grande mancha cinza-pálida permeada de pontos brilhantes. A mancha estava aí, os pontos brilhantes também. Havia, pois, oferecida à nossa percepção durante o sono, uma poeira visual, e esta poeira serviu para a fabricação do sonho.

Somente ela serve? Para falar ainda apenas do sentido da visão, digamos que ao lado das sensações visuais cuja fonte é interna existem aquelas que têm uma causa exterior. Ainda que com as pálpebras bem fechadas o olho distingue a luz da sombra e reconhece, até certo ponto, a natureza da luz. As sensações provocadas por uma luz real estão na origem de muitos de nossos sonhos. Uma vela acendida repentinamente fará surgir no sonhador, se seu sono não for muito profundo, um conjunto de visões nas quais dominará a idéia de incêndio. Tissié cita dois exemplos: "B... sonha que o teatro dAlexandria está em chamas; o fogo ilumina todo um quarteirão. De repente ele se vê transportado para o meio da fonte da Praça dos Cônsules; um corrimão de fogo corre ao longo das correntes que ligam as grossas colunas colocadas em torno da fonte. Depois ele se encontra em Paris na Exposição em chamas..., ele assiste a cenas dilacerantes, etc. Ele desperta em sobressalto. Seus olhos recebiam o feixe de luz projetado pela lanterna silenciosa que a freira que fazia a ronda virava para a sua cama ao passar. __ M... sonha que se alistou na infantaria da marinha onde serviu outrora. Ele vai ao Fort-de-France, a Toulon, a Lorient, à Criméia, a Constantinopla. Ele percebe clarões, ouve o estampido ..., assiste, enfim, a um combate no qual vê o fogo sair das bocas de canhão. Ele acorda em sobressalto. Como B..., ele foi despertado pelo facho de luz lançado pela lanterna silenciosa da freira que fazia a ronda." Tais são os sonhos que podem ser provocados por uma luz viva e inesperada.

Muito diferentes são os sonhos sugeridos por uma luz contínua e suave, como a luz da Lua. Krauss conta que uma noite, ao despertar, percebeu que ainda estendia o braço para o que foi, em seu sonho, uma jovem, que agora era apenas a Lua da qual recebia plenamente os raios. Este caso não é o único; parece que os raios da Lua, acariciando os olhos do sonhador, tinham a virtude de assim fazer surgirem aparições virginais. Não seria isso o que exprime a fábula de Endymion – o pastor adormecido para sempre, que a deusa Selena (ou seja, a Lua) ama com um profundo amor?

O PAPEL DAS SENSAÇÕES AUDITIVAS

O ouvido tem também suas sensações interiores – zumbido, zunido, assobio – que mal distinguimos durante a vigília e que o sono destaca nitidamente. Continuamos, adormecidos, a ouvir alguns barulhos externos. O estalo de um móvel, o fogo que crepita, a chuva que bate na janela, o vento que lança sua gama cromática na chaminé, tantos sons ainda que tocam o ouvido e que o sonho converte em conversa, grito, concerto, etc. Esfregam-se as tesouras contra as pinças nos ouvidos de Alfred Maury enquanto ele dorme: ele sonha imediatamente que ouve o sino tocar e que assiste aos acontecimentos de junho de 1848. Eu poderia citar outros exemplos. Mas seria preciso que os sons tivessem tanto espaço quanto as formas e as cores na maior parte dos sonhos. As sensações visuais predominam; freqüentemente apenas vemos enquanto acreditamos também ouvir. Acontece-nos, segundo a observação de Max Simon, manter em sonho toda uma conversação e nos darmos conta, de repente, que ninguém fala, que ninguém falou. Era uma troca direta de pensamentos, uma conversa silenciosa entre o nosso interlocutor e nós. Fenômeno estranho e, todavia, fácil de explicar. Para que ouçamos os sons em sonho, é preciso geralmente que haja barulhos reais percebidos. Com nada o sonho não faz nada; e onde não lhe fornecemos uma matéria sonora, ele tem dificuldade de fabricar a sonoridade.

O PAPEL DAS SENSAÇÕES TÁTEIS

O tato intervém tanto quanto o ouvido. Um contato, uma pressão também chegam à consciência enquanto se dorme. Impregnando com sua influência as imagens que ocupam em um dado momento o campo visual, a sensação tátil poderá modificar sua forma e significação. Suponhamos que o sonhador sinta, de repente, o contato do corpo com a camisa; ele se lembrará que está levemente vestido. Se acredita estar passeando na rua, é neste aparato muito simples que se oferecerá aos olhos dos transeuntes. Aliás, estes não ficarão chocados, porque é raro que as excentricidades às quais nos entregamos em sonho pareçam comover os espectadores, por mais confusos que nós próprios possamos estar com elas. Acabei de citar um sonho bem conhecido. Eis um outro, que muitos de vocês já devem ter sonhado. Ele consiste em voar, planar, atravessar o espaço sem tocar a terra. Em geral, quando ocorre uma vez, tende a se reproduzir, e a cada nova experiência se diz: "Tenho freqüentemente sonhado que estou voando sob o Sol, mas dessa vez estou bem desperto. Sei agora, e vou mostrar aos outros, que é possível subtrair-se das leis da gravidade." Se vocês despertarem bruscamente, eis o que creio que encontrarão: como vocês estariam deitados, sentiriam que seus pés perderam os pontos de apoio; por outro lado, acreditando não dormir, vocês não teriam consciência de estar deitados, diriam a si mesmos que não tocavam mais a terra, ainda que estivessem em pé. É esta convicção que o sonho de vocês desenvolveu. Observem, no caso em que vocês se sentem voando, que acreditam lançar seu corpo sobre o lado à direita ou à esquerda, elevando-o com um movimento brusco do braço que seria como um golpe de braço. Ora, este lado é justamente aquele sobre o qual vocês estão deitados. Despertem e verão que a sensação de esforço para voar é apenas a sensação de pressão do braço e do corpo contra a cama. Esta, destacada de sua causa, não era mais que uma vaga sensação de fadiga, atribuível a um esforço. Ligada então à convicção de que seu corpo tinha deixado o solo, ela é resolvida em sensação precisa de esforço para voar.

É interessante ver como as sensações de pressão, remontando ao campo visual e aproveitando a poeira luminosa que o ocupa, podem se transpor em formas e cores. Max Simon sonhou um dia que estava diante de duas pilhas de peças de ouro, que essas pilhas eram desiguais e que ele procurava igualá-las mas não o conseguia. Experimentava um vivo sentimento de angústia. Esse sentimento, aumentando a cada instante, acabou por despertá-lo. Percebeu então que uma de suas pernas estava presa pelas dobras da coberta, que seus dois pés não estavam no mesmo nível e procuravam em vão se aproximar um do outro. Tinha evidentemente surgido daí uma vaga sensação de desigualdade, a qual, irrompendo no campo visual e nele encontrando talvez (é a hipótese que proponho) uma ou várias manchas amarelas, se exprimia visualmente pela desigualdade de duas pilhas de peças de ouro. Há, pois, imanente às sensações táteis que ocorrem durante o sono, uma tendência a se visualizar, e a se inserir sob esta forma no sonho.

Mais importante ainda são as sensações do "tato interior" emanando de todos os pontos do organismo, e mais particularmente, das vísceras. O sono pode lhes dar, ou antes, lhes devolver uma finura e uma acuidade singulares. Sem dúvida elas estavam aí durante a vigília, mas estávamos distraídos pela ação, vivíamos exteriormente a nós mesmos: o sono nos fez reentrar em nós. Acontece de as pessoas sujeitas às laringites, às amidalites, etc., se sentirem retomadas por sua afecção no meio de um sonho e experimentarem picadas desagradáveis no lado da garganta. Simples ilusão, dizem ao despertar. Ai de mim! A ilusão torna-se rapidamente realidade. Citam-se as doenças e os acidentes graves, ataques de epilepsia, afecções cardíacas, etc., que têm sido previstos e profetizados em sonho. Não nos espantemos pois se filósofos como Schopenhauer querem que o sonho traduza à consciência os estímulos vindos do sistema nervoso simpático, se psicólogos como Scherner atribuem a cada órgão o poder de provocar sonhos específicos que o representariam simbolicamente e, enfim, se médicos como Artigues escreveram tratados sobre "o valor semiológico" do sonho, sobre a maneira de fazê-lo servir ao diagnóstico das doenças. Mais recentemente, Tissié mostrou como as perturbações da digestão, da respiração, da circulação se traduzem por espécies determinadas de sonhos.

Resumamos o que precede. No sono natural nossos sentidos não estão de modo algum fechados às impressões exteriores. Sem dúvida eles não têm mais a mesma precisão, mas, em compensação, reencontram muitas impressões "subjetivas" que passaram despercebidas durante a vigília, quando nos movíamos em um mundo exterior comum a todos os homens, e que reaparecem no sono, porque aí vivemos somente para nós mesmos. Não se pode nem mesmo dizer que a nossa percepção se estreita quando dormimos; antes, ela amplia, em certas direções pelo menos, seu campo de operação. É verdade que ela perde em tensão o que ganha em extensão. Ela traz quase somente o difuso e o confuso. Isto não significa que fabriquemos o sonho com menos sensação real.

Como o fabricamos? As sensações que nos servem de matéria são vagas e indeterminadas. Consideremos aquelas que figuram no primeiro plano, as manchas coloridas que evoluem diante de nós quando estamos com as pálpebras fechadas. Eis linhas negras sobre um fundo branco. Elas poderão representar um tapete, um tabuleiro de xadrez, uma página escrita e, ainda, uma multidão de outras coisas. Quem escolherá? Qual é a forma que imprimirá sua decisão à indecisão da matéria? Esta forma é a lembrança.

O SONHO É CRIADOR?

Observemos, inicialmente, que em geral o sonho não cria nada. Sem dúvida citam-se alguns exemplos de trabalho artístico, literário ou científico executado no decorrer de um sonho. Relembrarei apenas o mais conhecido de todos. Um músico do século XVIII, Tartini, obstinava-se em uma composição, mas a musa mostrava-se rebelde. Ele adormeceu e eis que o diabo em pessoa apareceu, se apoderou do violino e tocou a sonata desejada. Ao despertar, Tartini escreveu esta sonata de memória e deu a ela o nome de Sonata do Diabo. No entanto, não podemos concluir nada a partir de uma narrativa tão sumária. Seria preciso saber se Tartini terminou a sonata enquanto procurava lembrar-se dela. A imaginação do sonhador ao despertar faz acréscimos ao sonho, modifica-o retroativamente, tapando os buracos que podem ser consideráveis. Tenho procurado observações mais aprofundadas e, sobretudo, de uma autenticidade mais segura. A única que encontrei é a do romancista inglês Stevenson. Em um curioso ensaio intitulado A chapter on dreams, Stevenson nos informa que seus contos mais originais foram compostos ou pelo menos esboçados em sonho. Mas se vocês lerem atentamente o capítulo, verão que o autor vivenciou, durante uma certa parte de sua vida, um estado psicológico no qual lhe era difícil saber se dormia ou se estava desperto. Creio, em efeito, que quando o espírito cria, quando faz o esforço que a composição de uma obra ou a solução de um problema exige, ele não está dormindo; pelo menos a parte do espírito que trabalha não é a mesma que a que sonha; aquela prossegue, no subconsciente, uma pesquisa que não influencia o sonho e que só se manifesta ao despertar. Quanto ao próprio sonho, ele é apenas uma ressurreição do passado. Mas de um passado que podemos não reconhecer. Freqüentemente trata-se de um detalhe esquecido, de uma lembrança que parecia abolida e que em realidade se dissimulava nas profundezas da memória. Freqüentemente, também, a imagem evocada é a de um objeto ou de um fato percebido distraidamente, quase inconscientemente, durante a vigília. Sobretudo, há fragmentos de lembranças soltas que a memória reúne aqui e ali, e que apresenta de uma forma incoerente à consciência do sonhador. Diante dessa reunião desprovida de sentido, a inteligência (que continua a raciocinar, independentemente do que se diga a seu respeito) procura uma significação; ela atribui a incoerência às lacunas que ela preenche evocando outras lembranças, as quais, apresentam-se freqüentemente na mesma desordem, clamando, por sua vez, por uma nova explicação, e assim indefinidamente. Mas não insistirei nisto no momento. Basta-me dizer, para responder à questão apresentada anteriormente, que o poder enformador dos materiais transmitidos pelos órgãos dos sentidos, o poder que converte em objetos precisos e determinados as vagas impressões provenientes do olho, do ouvido, de toda a superfície e de todo o interior do corpo, é a lembrança.

PAPEL DA MEMÓRIA

A lembrança! No estado de vigília, temos lembranças que aparecem e desaparecem, reclamando nossa atenção sucessivamente. Mas estas são lembranças que se ligam estreitamente à nossa situação e à nossa ação. Lembro-me neste momento do livro do marquês de Hervey sobre os sonhos. É porque trato da questão do sonho e estou no Instituto Psicológico. Meu ambiente e minha ocupação, o que percebo e o que sou chamado a fazer orientam em uma direção particular a atividade de minha memória. As lembranças que evocamos durante a vigília, por mais estranhas que freqüentemente pareçam às nossas preocupações do momento, sempre se ligam a elas por algum aspecto. Qual é o papel da memória no animal? É o de lhe lembrar, em cada circunstância, as conseqüências vantajosas ou prejudiciais que se seguiram aos antecedentes análogos, e de lhe ensinar, assim, o que deve fazer. No homem, a memória é menos prisioneira da ação, reconheço-o, mas ela ainda lhe adere: nossas lembranças, em um dado momento, formam um todo solidário, uma pirâmide, se quiserem, cujo cume incessantemente movente coincide com nosso presente e penetra o futuro. Mas atrás das lembranças que vêm assim colocar-se sobre nossa ocupação presente e se revelar por meio dela, existem outras, milhares e milhares de outras, por baixo, sob a cena iluminada pela consciência. Sim, creio que nossa vida passada está aí, conservada até em seus mínimos detalhes, que não esquecemos nada, e que tudo o que percebemos, pensamos e quisemos desde o primeiro despertar de nossa consciência, persiste indefinidamente. Mas as lembranças que minha memória conserva em suas mais obscuras profundezas nela estão no estado de fantasmas invisíveis. Elas talvez aspirem à luz; todavia não tentam voltar à tona; elas sabem que é impossível, e que eu, ser vivente e agente, tenho mais o que fazer do que me ocupar com elas. Mas suponham que em um dado momento eu me desinteresse da situação presente, da ação urgente, enfim, do que concentrava sobre um único ponto todas as atividades da memória. Suponham, em outros termos, que eu adormeça. Então, essas lembranças imóveis, sentindo que acabo de afastar o obstáculo, de abrir o alçapão que as mantinha no subsolo da consciência, colocam-se em movimento. Elas se levantam, agem, executam na noite do inconsciente uma imensa dança macabra. E, todas em conjunto, correm para a porta que acaba de se entreabrir. Todas elas querem passar. Elas não podem, elas são muitas. Desta multidão de chamadas, quais serão as escolhidas? Vocês adivinharão sem dificuldade. Há pouco, em vigília, as lembranças admitidas eram as que podiam invocar relações de parentesco com a situação presente, com as minhas percepções atuais. Agora, são as formas mais vagas que se desenham a meus olhos, os sons mais indecisos que impressionam meus ouvidos, é um toque mais indistinto que está espalhado pela superfície de meu corpo; mas são também as sensações mais numerosas que me vêm do interior de meus órgãos. Entre as lembranças-fantasmas que aspiram a se carregar de cor, de sonoridade, enfim, de materialidade, só serão bem sucedidas aquelas que puderem assimilar-se à poeira colorida que percebo, aos barulhos de fora e de dentro que ouço, etc., e que, além do mais, se harmonizarem com o estado afetivo geral que minhas impressões orgânicas compõem. Quando esta junção entre a lembrança e a sensação se operar, eu terei um sonho.

CORPO E ALMA DO SONHO

Em uma página poética da Eneida, o filósofo Plotino, intérprete e continuador de Platão, nos explica como os homens nascem para a vida. A natureza, diz ele, esboça os corpos vivos, mas somente os esboça. Ela não iria até o fim apenas com as suas próprias forças. Por outro lado, as almas habitam o mundo das Idéias. Incapazes de agir e, aliás, nem pensam nisso, elas planam acima do tempo, fora do espaço. Mas, entre os corpos, há aqueles que respondem mais, por sua forma, às aspirações de tais ou quais almas. E entre as almas, há aquelas que se reconhecem mais em tais ou quais corpos. O corpo, que não sai totalmente viável das mãos da natureza, se eleva para a alma que lhe daria a vida completa. E a alma, olhando o corpo onde acredita perceber o reflexo de si mesma, fascinada como se fitasse um espelho, se deixa atrair, se inclina e cai. Sua queda é o começo da vida. Comparo, a essas almas desprendidas, as lembranças que estão à espera no fundo do inconsciente, do mesmo modo que nossas sensações noturnas assemelham-se a esses corpos apenas esboçados. A sensação é quente, colorida, vibrante e quase viva, mas indecisa. A lembrança é nítida e precisa, mas sem interior e sem vida. A sensação quer encontrar uma forma sobre a qual fixar a indecisão de seus contornos. A lembrança quer obter uma matéria para se preencher, se carregar, enfim, se atualizar. Elas se atraem mutuamente, e a lembrança-fantasma, materializando-se na sensação que lhe traz o sangue e a carne, torna-se um ser que viverá uma vida própria, um sonho.

O nascimento do sonho não tem, pois, nada de misterioso. Nossos sonhos se elaboram mais ou menos como nossa visão do mundo real. O mecanismo de operação é o mesmo em suas grandes linhas. O que vemos de um objeto colocado sob nossos olhos, o que ouvimos de uma frase pronunciada ao nosso ouvido, é pouca coisa, em efeito, ao lado do que nossa memória aí acrescenta. Quando folheiam um jornal ou um livro, vocês acreditam perceber efetivamente cada letra de cada palavra, ou mesmo cada palavra de cada frase? Não leriam, então, muitas páginas de seu jornal. A verdade é que vocês percebem da palavra, e mesmo da frase, somente algumas letras ou alguns traços característicos, apenas o que é preciso para adivinhar o restante: todo o resto vocês figuram o ver, em realidade o alucinam. Experiências numerosas e concordantes não deixam nenhuma dúvida a esse respeito. Citarei apenas as de Goldscheider e Mueller. Esses experimentadores escrevem ou imprimem fórmulas de uso corrente: "Entrada estritamente proibida", "Prefácio à quarta edição", etc.; mas eles têm o cuidado de cometer erros, trocando e sobretudo omitindo letras. A pessoa que deve servir de sujeito da experiência é colocada diante dessas fórmulas, na escuridão, e naturalmente ignorando o que foi escrito. Então a inscrição é iluminada durante um tempo muito curto, muito curto para que o observador possa perceber todas as letras. Começou-se, em efeito, por determinar experimentalmente o tempo necessário para a visão de uma letra do alfabeto; é pois fácil fazer de tal modo que o sujeito não possa distinguir mais de oito ou dez letras, por exemplo, das trinta ou quarenta que compõem a fórmula. Ora, o mais freqüentemente, ele lê esta fórmula sem dificuldade. Mas este não é o ponto mais instrutivo dessa experiência.

MECANISMO DA PERCEPÇÃO NORMAL

Se se pergunta ao observador quais são as letras que ele está certo de ter percebido, ele pode designar letras que estão realmente presentes, mas indicará também letras ausentes, as quais foram trocadas por outras ou simplesmente omitidas. Assim, porque o sentido parecia exigir, ele viu destacarem-se em plena luz letras inexistentes. Os caracteres realmente percebidos serviram, pois, para evocar uma lembrança. A memória inconsciente, reencontrando a fórmula à qual eles davam um começo de realização, projetou essa lembrança para fora sob uma forma alucinatória. É essa lembrança que o observador viu, tanto e mais que a própria inscrição. Em suma, a leitura corrente é um trabalho de adivinhação, mas não de adivinhação abstrata: é uma exteriorização de lembranças, de percepções simplesmente rememoradas e, conseqüentemente, irreais, as quais aproveitam-se da realização parcial que encontram aqui e ali para se realizar integralmente.

Assim, no estado de vigília, o conhecimento que tomamos de um objeto implica uma operação análoga à que ocorre no sonho. Percebemos da coisa apenas o seu esboço; este lança um apelo à lembrança completa da coisa; e a lembrança completa, da qual nosso espírito não tinha consciência, que permanecia interior como um simples pensamento, aproveita a ocasião para se lançar para fora. É esta espécie de alucinação, inserida em um quadro real, que nos damos quando vemos a coisa. Haveria, aliás, muito a dizer sobre a atitude e a conduta da lembrança no curso desta operação. Não é preciso acreditar que as lembranças alojadas no fundo da memória aí permaneçam inertes e indiferentes. Elas estão à espera, elas são quase atentas. Quando, com o espírito mais ou menos preocupado, abrimos nosso jornal, não nos acontece de cair imediatamente sobre uma palavra que responde justamente à nossa preocupação? Mas a frase não tem sentido, e percebemos bem rapidamente que a palavra lida por nós não era a palavra impressa: havia simplesmente entre elas alguns traços comuns, uma vaga semelhança de configuração. A idéia que nos absorvia deve ter dado o alerta, no inconsciente, a todas as imagens da mesma família, a todas as lembranças de palavras correspondentes, fazendo com que elas esperassem, de alguma maneira, um retorno à consciência. Torna-se efetivamente consciente aquela que a percepção atual de uma certa forma de palavra começou a atualizar.

Tal é o mecanismo da percepção propriamente dita, tal é o mecanismo do sonho. Nos dois casos há, de um lado, impressões reais produzidas nos órgãos dos sentidos e, de outro, lembranças que vêm se inserir na impressão e aproveitar sua vitalidade para voltar à vida.

MECANISMO DO SONHO

Mas, onde está a diferença entre perceber e sonhar? O que é dormir? Não estou perguntando, bem se entenda, quais são as condições fisiológicas do sono. Esta é uma questão para ser debatida entre os fisiologistas e ela está longe de ser resolvida. Pergunto como devemos representar o estado de alma do homem que dorme, afinal, o espírito continua a trabalhar durante o sono. Ele atua – acabamos de ver – sobre as sensações, sobre as lembranças e, quer esteja dormindo, quer esteja acordado, ele combina a sensação com a lembrança que ela evoca. O mecanismo de operação parece ser o mesmo nos dois casos. Todavia temos de um lado a percepção normal e de outro o sonho. O mecanismo não funciona, pois, da mesma maneira nos dois casos. Onde está a diferença? E qual é a característica psicológica do sono?

Não confiemos muito nas teorias. Tem-se dito que dormir consiste em se isolar do mundo exterior. Mas mostramos que o sono não fecha nossos sentidos às impressões externas, que ele empresta delas os materiais da maior parte dos sonhos. Tem-se visto ainda no sono um repouso dado às funções superiores do pensamento, uma suspensão do raciocínio. Não creio que isso seja mais exato. No sonho, nos tornamos freqüentemente indiferentes à lógica, mas não incapazes de lógica. Eu quase diria, correndo o risco de beirar o paradoxo, que o erro do sonhador é antes o de raciocinar muito. Ele evitaria o absurdo se assistisse, como simples espectador, ao desfile de suas visões. Mas quando quer a toda força explicá-las, sua lógica, destinada a ligar entre si as imagens incoerentes, pode apenas parodiar a da razão e beirar o absurdo. Reconheço, aliás, que as funções superiores da inteligência relaxam-se durante o sono, e que, mesmo que não seja encorajada pelo jogo incoerente das imagens, a faculdade de raciocinar se distrai por vezes imitando o raciocínio normal. Mas se diria o mesmo de todas as outras faculdades. Não é, pois, pela abolição do raciocínio, não mais que pelo fechamento dos sentidos, que caracterizaremos o estado de sonho. Deixemos de lado as teorias e tomemos contato com o fato.

É preciso realizar uma experiência decisiva consigo mesmo. Ao sair do sonho – visto que pouco pode se analisar no curso do próprio sonho – se observará a passagem do sonho à vigília, se a cercará de tão perto quanto puder: atento ao que é essencialmente desatenção, surpreender-se-á, do ponto de vista da vigília, o estado de alma, ainda presente, do homem que dorme. É difícil, mas não é impossível para quem se exercitou nisso pacientemente. Permitam aqui ao conferencista contar um de seus sonhos, e o que ele acreditou constatar ao despertar.

O sonhador acredita estar na tribuna, discursando para uma assembléia. Um murmúrio confuso eleva-se do fundo do auditório. Ele se acentua, torna-se estrondoso, uivante, alarido, espantoso. Enfim ressoam de todas as partes, escandidos sobre um ritmo regular, os gritos "Fora! Fora!" Desperta bruscamente neste momento. Um cão latia no jardim vizinho, e com cada um dos "Au, au" do cão se confundia um dos gritos "Fora!". Eis o instante a ser apreendido. O eu da vigília, que acaba de aparecer, vai se voltar para o eu do sonho, que ainda está aí, e lhe dizer: "Eu lhe pego em flagrante delito. Você me mostra uma assembléia que grita, e há simplesmente um cão que late. Não tente fugir; eu tenho você; entregue-me seu segredo, você vai me deixar ver o que fazia." A que o eu dos sonhos responderá: "Veja: Eu não fazia nada, e é justamente isso o que nos difere, você e eu, um do outro. Você imagina que para ouvir um cão latir, e para compreender que é um cão que late, não tem que fazer nada? Erro profundo! Você faz, não duvide disso, um esforço considerável. É preciso que você tome toda a sua memória, toda a sua experiência acumulada, e que a leve por um estreitamento súbito, a apresentar ao seu ouvido apenas um desses pontos, a lembrança que parece mais com essa sensação e que melhor pode interpretá-la: a sensação é então recoberta pela lembrança. É preciso aliás que você obtenha a aderência perfeita, que não haja o mais leve afastamento entre elas (senão, você estaria precisamente no sonho); você só pode assegurar esse ajustamento por uma atenção, ou antes, por uma tensão simultânea da sensação e da memória: assim faz o alfaiate quando experimenta em você uma vestimenta que está apenas "alinhavada"; ele ajusta com alfinetes tanto quanto ele pode o tecido sobre seu corpo. Sua vida, no estado de vigília, é pois uma vida de trabalho, mesmo quando você acredita nada fazer, porque a todo momento você tem que escolher, e a todo momento excluir. Você escolhe entre suas sensações, visto que rejeita de sua consciência milhares de sensações "subjetivas" que reaparecem logo que você adormece. Você escolhe, com uma precisão e uma delicadeza extremas, entre as suas lembranças, visto que afasta toda lembrança que não se molda sobre o seu estado presente. Essa escolha que você efetua sem cessar, essa adaptação continuamente renovada, é a condição essencial do que se chama o bom senso. Mas adaptação e escolha o mantêm em um estado de tensão ininterrupta. Você não se dá conta dela no momento, do mesmo modo que não sente a pressão da atmosfera. Mas se cansa com o tempo. Ter bom senso é muito fatigante. Ora, eu lhe dizia há pouco: eu difiro de você justamente por não fazer nada. Eu me abstenho pura e simplesmente de fazer o esforço sem trégua que você faz. Você se liga à vida; eu estou desligado dela. Tudo me é indiferente. Nada me interessa. Dormir é se desinteressar.2 Dorme-se na exata medida em que se desinteressa. Uma mãe que dorme ao lado de seu filho poderá não ouvir os trovões, enquanto um suspiro da criança a despertará. Dormia ela realmente para sua criança? Nós não dormimos para o que continua a nos interessar. "Você me pergunta o que faço enquanto sonho. Vou lhe dizer o que você faz quando acorda. Você me toma – eu, o eu dos sonhos, eu, a totalidade de seu passado – e me leva, de contração em contração, a me encerrar no círculo muito pequeno que você traça em torno de sua ação presente. Isto é estar desperto, é viver a vida psicológica normal, é lutar, é querer. Quanto ao sonho, você tem necessidade que eu lhe explique? É o estado em que você se encontra naturalmente desde que se abandone, desde que negligencie a concentração sobre um único ponto, desde que cesse de querer. Se você insiste, se exige que lhe explique alguma coisa, pergunte como a sua vontade faz, a cada momento da vigília, para obter instantaneamente e quase inconscientemente a concentração de tudo o você traz consigo sobre o ponto que lhe interessa. Mas dirija-se então à psicologia da vigília. Ela tem por principal função lhe responder, porque estar desperto e querer são uma só e mesma coisa."

Eis o que diria o eu dos sonhos. E ele nos contaria muitas outras coisas se o deixássemos. Mas é tempo de concluir. Onde está a diferença essencial entre o sonho e a vigília. Resumiremos dizendo que as mesmas faculdades se exercem, seja em vigília seja em sonho, mas elas estão tensas em um caso e relaxadas no outro. O sonho é a vida mental inteira, menos o esforço de concentração. Ainda percebemos, ainda lembramos, ainda raciocinamos: percepções, lembranças e raciocínios podem abundar no sonhador, porque abundância, no domínio do espírito, não significa esforço. O que exige esforço é a precisão do ajuste. Para que um latido de cão acione em nossa memória, en passant, a lembrança de um ruído de assembléia, não temos que fazer nada. Mas para que ele encontre, de preferência a todas as outras lembranças, a lembrança de um latido de cão, e para que ela possa desde então ser interpretada, isto é, efetivamente percebida como um latido, é preciso um esforço positivo. O sonhador não tem mais força para fazê-lo. Por aí, e por aí somente, é que ele se distingue do homem desperto.

Tal é a diferença. Ela se exprime sob muitas formas. Não entrarei nos detalhes; limitar-me-ei a chamar a atenção de vocês para dois ou três pontos: a instabilidade do sonho, a rapidez com a qual ele pode se desenrolar, a preferência que ele dá às lembranças insignificantes.

INSTABILIDADE DOS SONHOS

A instabilidade se explica facilmente. Como o sonho tem por essência o não-ajustamento exato entre a sensação e a lembrança, contra a mesma sensação se aplicarão lembranças muito diversas. Eis, por exemplo, no campo da visão, uma mancha verde salpicada de pontos brancos. Ela poderá materializar a lembrança de um canteiro com flores, a de um bilhar com suas bolas e muitas outras ainda. Todas querem reviver na sensação, todas correm à sua solicitação. Algumas vezes elas a atingem uma após a outra: o canteiro torna-se bilhar e assistimos a transformações extraordinárias. Outras se reúnem simultaneamente: então o terreno é bilhar – absurdo que o sonhador talvez procure eliminar por um raciocínio que mais o agravará.

RAPIDEZ DE ALGUNS SONHOS

A rapidez de alguns sonhos parece ser um outro efeito da mesma causa. Em alguns segundos, o sonho pode nos apresentar uma série de acontecimentos que ocupariam dias inteiros durante a vigília. Vocês conhecem a observação de Alfred Maury:3 ela permanece clássica e, o que quer que se tenha dito a seu respeito nesses últimos tempos, a considero verossímil, porque tenho encontrado narrativas análogas na literatura do sonho. Mas esta precipitação das imagens não tem nada de misterioso. Observe que as imagens do sonho são sobretudo visuais; as conversas que o sonhador acredita ter ouvido são a maior parte do tempo reconstituídas, completadas, ampliadas ao despertar: talvez mesmo, em certos casos, fosse apenas o pensamento da conversação, sua significação global, que acompanhava as imagens. Ora, uma multidão tão grande quanto se queira de imagens visuais pode ser dada de uma só vez, de forma panorâmica, e com mais forte razão isso acontecerá na sucessão de um pequeno número de instantes. Não é pois espantoso que o sonho reúna em alguns segundos o que se estenderia por vários dias de vigília: ele vê em resumo; ele procede, em definitivo, como faz a memória. No estado de vigília, a lembrança visual que nos serve para interpretar a sensação visual é obrigada a se colocar exatamente sobre ela; ela segue pois seu desenrolar, ela ocupa o mesmo tempo; em suma, o reconhecimento perceptivo dos eventos exteriores dura exatamente tanto quanto eles. Mas, no sonho, a lembrança interpretativa da sensação visual reconquista sua liberdade; a fluidez da sensação visual faz com que a lembrança não adira a ela; o ritmo da memória interpretativa não tem mais que adotar o da realidade; e as imagens podem desde então se precipitar, se lhes agradar, com uma rapidez vertiginosa, como fariam as de um filme cinematográfico se o seu desenrolar não fosse regulado. Precipitação, assim como abundância, não é sinal de força no domínio do espírito: é a regulagem, é sempre a precisão do ajustamento que reclama um esforço. Que a memória interpretativa se tencione, que ela preste atenção à vida, que ela saia, enfim, do sonho: os eventos de fora escandirão sua marcha e diminuirão seu andar – como, em um relógio, o balancim recorta em partes e distribui em uma duração de vários dias a distensão da mola que seria quase instantânea se ela estivesse livre.

RETORNO DAS LEMBRANÇAS FUGIDIAS

Restaria saber porque o sonho prefere tal ou qual lembrança a outras, igualmente capazes de se colocarem sobre as sensações atuais. As fantasias do sonho não são mais explicáveis que as da vigília; pelo menos pode-se assinalar a sua tendência mais marcante. No sono normal, nossos sonhos reproduzem, de preferência, os pensamentos que passaram como raios ou os objetos que percebemos sem fixar a nossa atenção sobre eles. Se sonhamos, à noite, com os acontecimentos do dia, são os incidentes insignificantes, e não os fatos importantes, que têm mais chances de reaparecer. Estou totalmente de acordo com o modo de ver de Delage, de W. Robert e de Freud neste ponto.4 Estou na rua; espero o bonde; ele não poderia bater em mim visto que estou na calçada: se, no momento em que ele me roça, a idéia de um perigo possível atravessa o meu espírito – que digo eu? Se meu corpo recua instintivamente sem que eu tenha mesmo consciência de ter medo, eu poderia sonhar, na noite seguinte, que o bonde me esmaga. Durante o dia sou um doente cujo estado é desesperador. Se um vislumbre de esperança se acender em mim por um instante – luz fugidia, quase despercebida – meu sonho da noite poderá mostrar-me curado; em meu sonho estarei curado, não sonharei que estou morto ou doente. Em suma, o que reaparece é de preferência o que foi menos observado. Nada de espantoso nisso. O eu que sonha é um eu distraído, que se distende. As lembranças que se harmonizam melhor com ele são as lembranças de distração, as que não trazem a marca do esforço.

Tais são as observações que eu queria apresentar a respeito dos sonhos. Elas são muito incompletas. Aplicam-se apenas aos sonhos que conhecemos hoje, àqueles que lembramos e que pertencem ao sono leve. Quando se dorme profundamente, têm-se talvez sonhos de uma outra natureza, mas não resta grande coisa deles ao despertar. Inclino-me a crer – mais por razões teóricas e por conseqüência hipotéticas – que temos nesse caso uma visão muito mais extensa e mais detalhada de nosso passado. A psicologia deverá dirigir seu esforço sobre o sono profundo, não somente para nele estudar a estrutura e o funcionamento da memória inconsciente, mas ainda para investigar os fenômenos mais misteriosos que surgem da "pesquisa psíquica". Não me aventurarei neste terreno; não posso entretanto me impedir de atribuir alguma importância às observações recolhidas com um tão infatigável zelo pela Society for Psychical Research. Explorar o inconsciente, trabalhar no subsolo do espírito com os métodos especialmente apropriados, tal será a tarefa principal da psicologia no século que se abre. Não duvido que belas descobertas estão reservadas, tão importantes talvez quanto foram, nos séculos precedentes, aquelas das ciências físicas e naturais. É pelo menos o que espero e desejo para ela ao terminar.

1 Tradução feita pelo professor-assistente doutor Jonas Gonçalves Coelho, professor de Filosofia no Departamento de Ciências Humanas da UNESP de Bauru.
Nota do tradutor: A divisão do texto em partes, com títulos respectivos, segue em geral a edição de 1993 da PUF do livro de Bergson Lénergie spirituelle. A diferença é que nessa edição os títulos não aparecem no meio do texto, mas no cabeçalho da página à direita.
Nessa conferência, Bergson desenvolve dois temas fundamentais de uma de suas mais importantes obras filosóficas, publicada quatro anos antes, Matéria e memória. Primeiramente, trata da relação entre percepção e memória, procurando destacar a íntima relação entre essas duas "operações elementares do espírito" tanto na vigília quanto no sonho, com ênfase especial no papel desempenhado pela memória. A seguir, Bergson trata da noção de tensão psicológica, intimamente relacionada à noção de vontade, a partir da qual estabelece a diferença fundamental entre o sonho e a vigília. A relevância desses dois temas deve ser considerada ao relembrarmos que para Bergson a memória e a vontade são os dois componentes fundamentais da personalidade humana, e que o filósofo define o espírito ora como memória ora como vontade.
2 A idéia que apresentamos aqui avançou desde que a propusemos nesta conferência. A concepção do sono-desinteressante foi introduzida na psicologia; foi criada, para designar o estado geral da consciência no sono, a palavra "desinteresse". Sobre esta concepção, M. Claparède propôs uma teoria muito interessante, que vê no sono um meio de defesa do organismo, um verdadeiro instinto.
3 "Eu me encontrava deitado em meu quarto, tendo minha mãe à cabeceira. Sonho com o Terror; assisto a cenas de massacre, compareço diante do tribunal revolucionário, vejo Robespierre, Marat, Fouquier-Tinville...; discuto com eles; sou julgado, condenado à morte, conduzido em carroça na praça da Revolução; subo o cadafalso; o executor me amarra na prancha fatal, a balança, o cutelo cai; sinto minha cabeça se separar de meu tronco, acordo atormentado pela mais viva angústia, e sinto sobre o pescoço a flecha de minha cama que se soltou subitamente, e caiu sobre minhas vértebras cervicais, como uma navalha de guilhotina. Isso aconteceu no mesmo instante, como minha mãe o confirma, e entretanto era esta sensação externa que eu tinha tomado como ponto de partida de um sonho onde tantos fatos sucederam" (Maury, O sono e os sonhos, 4 ed., p.161).
4 Seria preciso falar aqui dessas tendências reprimidas às quais a escola de Freud consagrou um tão grande número de estudos. Na época em que foi feita a presente conferência, a obra de Freud sobre os sonhos tinha aparecido, mas a "psicanálise" estava longe de seu desenvolvimento atual.