31 juil. 2008

Hildinha e Mícollis


Hilda Hilst

Colada à tua boca a minha desordem.
O meu vasto querer.
O incompossível se fazendo ordem.
Colada à tua boca, mas descomedida
Árdua
Construtor de ilusões examino-te sôfrega
Como se fosses morrer colado à minha boca.
Como se fosse nascer
E tu fosses o dia magnânimo
Eu te sorvo extremada à luz do amanhecer.
***

Dorme o tormento
O Eterno dorme suspenso
Sobre as idéias e inventos

Só eu não durmo
Pra te pensar.

Dormem perjuros
E vanidades e urnas
Dormem os medos
E califados e ventres
Dormem ardentes
Os loucos, pátios adentro

Só eu não durmo
Pra te pensar.

Dormem ativas
As dobradiças
De mil bordéis e conventos

E pêndulos dormindo ao tempo

Só eu não durmo
Pra te pensar.

E agora escura
Do jugo dos sentimentos
Irreversiva, suicida
Tateio aquele rochedo
Do ódio de desamar.
***

Tenho medo de ti e deste amor
Que à noite se transforma em verso e rima.
E o medo de te amar, meu triste amor,
Afasta o que aos meus olhos aproxima.

Conheço as conveniências da retina.
Muita coisa aprendi dos teus afetos:
Melhor colher os frutos da vindima
Que buscá-los em vão pelos desertos.

Melhor a solidão. Melhor ainda
Enlouquecendo os meus olhos, o escuro,
Que o súbito clarão de aurora vinda

Silencioso dos vãos de um alto muro.
Melhor é não te ver. Antes ainda
Esquecer de que existe amor tão puro.
***

Somos crianças nesta noite escura.
Tudo mais não sabemos.
Largas raízes maduras
Apressam nosso passo,
E é de amor e aço
O teu longo abraço em toda cintura.
Somos crianças nesta noite escura.
Morno rumor de sombras
E de folhas
Desfaz a rosa que eu te prometia
Temos olhos e sonhos.
E eu não sou aquele que o teu sonho pedia.
***

Ama-me é tempo ainda

Ama-me. É tempo ainda. Interroga-me.
E eu te direi que o nosso tempo é agora.
Esplêndida avidez, vasta ventura
Porque é mais vasto o sonho que elabora
Há tanto tempo sua própria tessitura.
Ama-me. Embora eu te pareça
Demasiado intensa. E de aspereza.
E transitória se tu me repensas.

Roteiro do Silêncio

Não há silêncio bastante
Para o meu silêncio.
Nas prisões e nos conventos
Nas igrejas e na noite
Não há silêncio bastante
Para o meu silêncio.

Os amantes no quarto
Os ratos no muro
A menina
Nos longos corredores do colégio
Todos os cães perdidos
Pelos quais tenho sofrido:
O meu silêncio é maior
Que toda a solidão
E que todo silêncio.

Prelúdios intensos para os desmemoriados do amor

Ai, ai de mim. Enquanto caminhas
Em lúcida altivez, eu já sou o passado.
Esta fronte que é minha, prodigiosa
De núpcias e caminho
É tão diversa da tua fronte descuidada.

Tateio. E a um só tempo vivo
E vou morrendo. Entre terra e água
Meu existir anfíbio. Passeia
Sobre mim, amor, e colhe o que me resta:
Noturno girassol. Rama secreta.

Amavisse

Como se te perdesse, assim te quero.
Como se não te visse (favas douradas
Sob um amarelo) assim te apreendo brusco
Inamovível, e te respiro inteiro

Um arco-íris de ar em águas profundas.

Como se tudo o mais me permitisses,
A mim me fotografo nuns portões de ferro
Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima
No dissoluto de toda despedida.

Como se te perdesse nos trens, nas estações
Ou contornando um círculo de águas
Removente ave, assim te somo a mim:
De redes e de anseios inundada.
(II)

* * *
Descansa.
O Homem já se fez
O escuro cego raivoso animal
Que pretendias.
(Via Vazia - VIII)
* * *

Que canto há de cantar o que perdura?
A sombra, o sonho, o labirinto, o caos
A vertigem de ser, a asa, o grito.
Que mitos, meu amor, entre os lençóis:
O que tu pensas gozo é tão finito
E o que pensas amor é muito mais.
Como cobrir-te de pássaros e plumas
E ao mesmo tempo te dizer adeus
Porque imperfeito és carne e perecível

E o que eu desejo é luz e imaterial.
Que canto há de cantar o indefinível?
O toque sem tocar, o olhar sem ver
A alma, amor, entrelaçada dos indescritíveis.
Como te amar, sem nunca merecer?

Passeio

...Lenta será minha voz e sua longa canção.
Lentamente se adensam essas águas
Porque um todo de terra em mim se alarga.

E de constância e singeleza tanta,
Meus mortos hoje sobre um chão de linhos
Por algum tempo guardarão meu ritmo
Nos ouvidos da terra. De granito.
Pude aclarar a sombras nos oiteiros
E aquecer num sopro o vento da tarde.
Mas não vereis ainda meus prodígios
Porque haverá lideiras neste outono
E vossos olhos estarão por lá
Desocupados do sono, extremados
Para uma só visão num só caminho.



Leila Mícollis

Poema ao Mais Recente Amor

Estar entre teus pêlos e dedos,
entre tua densidade,
neste transpirar sob medida
aos teus gemidos.
Estar entre teus trópicos,
entre o teu desejo e o meu prazer;
beber parte de teus líquens e teus rios
percorrendo-te da foz até a origem,
e pura a cada amor partir mais virgem.

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