31 juil. 2008

Jorge Luis Borges (1899/1986)

Jorge Luis Borges (1899/1986)


Olhar o rio que é de tempo e água
e recordar que o tempo é outro rio,
saber que nos perdemos como o rio
e que os rostos passam como a água.

Sentir que a vigília é outro sono
que sonha não sonhar e que a morte
que teme a nossa carne é essa morte
de cada noite, que se chama sono.

Ver no dia ou até no ano um símbolo
quer dos dias do homem quer dos anos,
converter a perseguição dos anos
numa música, um rumor e um símbolo,

Ver só na morte o sono, no ocaso
um triste ouro, assim é a poesia
que é imortal e pobre. A poesia
volta como a aurora e o ocaso

Às vezes certas tardes uma cara
Olha-nos do mais fundo dum espelho;
a arte deve ser como esse espelho
que nos revela a nossa própria cara.

Contam que Ulisses, farto de prodígios
chorou de amor ao divisar Ítaca
verde e humilde. A arte é essa Ítaca
de verde eternidade e não prodígios

Também é como o rio interminável
que passa e fica e é cristal dum mesmo
Heraclito inconstante, que é o mesmo
e é outro, como o rio interminável.
***

Os Justos

Um homem que cultiva seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sur jogam um silencioso xadrez.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que lêem os tercetos finais de certo canto.
O que acaricia um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão salvando o mundo.

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