31 juil. 2008

Ivan Junqueira é um passarinho



Minha mãe chorando no fundo da noite

rachou o silêncio do quarto adormecido.

Meu pai olhava o escuro e não dizia

[nada.

Um relógio preto gotejava barulho.

Lá fora o vento lambia as espáduas

[do céu.

Minha mãe chorando no fundo da noite
apunhalou o sono de Deus.

***

A sensação oca de que tudo acabou
o pânico impresso na face dos nervos
o solitário inverno da carne
a lágrima, a doce lágrima impossível…
e a chuva soluçando devagar
sobre o esqueleto tortuoso das árvores
***

E se eu disser

E se eu disser que te amo - assim, de cara,
sem mais delonga ou tímidos rodeios,
sem nem saber se a confissão te enfara
ou se te apraz o emprego de tais meios?
E se eu disser que sonho com teus seios,
teu ventre, tuas coxas, tua clara
maneira de sorrir, os lábios cheios
da luz que escorre de uma estrela rara?
E se eu disser que à noite não consigo
sequer adormecer porque me agarro
à imagem que de ti em vão persigo?
Pois eis que o digo, amor. E logo esbarro
em tua ausência - essa lâmina exata
que me penetra e fere e sangra e mata.
***

Talvez o Vento Saiba

Talvez o vento saiba dos meus passos,
das sendas que os meus pés já não abordam,
das ondas cujas cristas não transbordam
senão o sal que escorre dos meus braços.
As sereias que ouvi não mais acordam
à cálida pressão dos meus abraços,
e o que a infância teceu entre sargaços
as agulhas do tempo já não bordam.

Só vejo sobre a areia vagos traços
de tudo o que meus olhos mal recordam
e os dentes, por inúteis, não concordam
sequer em mastigar como bagaços.

Talvez se lembre o vento desses laços
que a dura mão de Deus fez em pedaços.

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