24 mai 2009

Fragmentos de um domingo.

E é a força sem fim de duas bocas,
De duas bocas que se juntam, loucas!
De inveja as gaivotas a gritar...

Alexandre O'Neill

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O Deus-Verme
de Augusto dos Anjos

Fator universal do transformismo.
Filho da teleológica matéria,
Na superabundância ou na miséria,
Verme - é o seu nome obscuro de batismo.

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Então, o mais terrível dos males, a morte, não é nada para nós, porque quando estamos vivos é a morte que não está presente; quando a morte está presente, nós não mais estamos. A morte, então, não é nada, nem para os vivos, nem para os mortos, já que para aqueles ela não existe, e estes não mais estão aqui. Contudo, a maioria, no confronto da morte, ora foge dela como se fosse o maior dos males, ora a procura como solução dos males da vida.
(DIÓGENES LAÉRCIO X, Carta a Meneceu, 125-126)

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Manoel de Barros

Há um comportamento de eternidade nos caramujos.
Para subir os barrancos de um rio, eles percorrem um dia inteiro até chegar amanhã.
O próprio anoitecer faz parte de haver beleza nos caramujos.
Eles carregam com paciência o início do mundo.
No geral os caramujos têm uma voz desconformada por dentro.
Talvez porque tenham a boca trôpega.
Suas verdades podem não ser.
Desde quando a infância nos praticava na beira do rio
Nunca mais deixei de saber que esses pequenos moluscos
Ajudam as árvores a crescer.
E achei que esta história só caberia no impossível.
Mas não; ela cabe aqui também.

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Dialética
Vinícius de Moraes

É claro que a vida é bela
E a alegria, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E que tenho tudo pra ser feliz

Mas acontece que eu sou triste...

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Pré-História
de Murilo Mendes

Mamãe vestida de rendas
Tocava piano no caos.
(...)

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Um dia desses, quero ser um grande poeta inglês do século passado,
Dizer:
Oh céu, oh mar, oh clã, oh destino
Lutar na Índia em 1866
E sumir num naufrágio clandestino

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Gota a gota tomba o silêncio. Condensa-se no telhado da mente e cai por tanques de água abaixo. Para sempre sozinho, sozinho, sozinho – ouço o silêncio tombar e espalhar seus círculos até os mais longínquos recantos. Saciado e repleto, sólido na satisfação da meia-noite, eu, a quem a solidão destrói, deixo que o silêncio tombe gota a gota.

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Não basta que as ruinas do deserto ainda cheirem a home; que um sôpro menstrual corra sôbre elas nos turbilhões masculinos do ceu; não basta que o combate eterno do homem e da mulher atravesse os canais ravinados de pedra, as colunas super-aquecidas do ar.

Antonin Artaud
Heliogabalo ou o Anarquista Coroado

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Manoel de Barros
Toda vez que encontro uma parede
ela me entrega às suas lesmas.
Não sei se isso é uma repetição de mim ou das
lesmas.
Não sei se isso é uma repetição das paredes ou
de mim.
Estarei incluído nas lesmas ou nas paredes?
Parece que lesma só é uma divulgação de mim.
Penso que dentro de minha casca
não tem um bicho:
Tem um silêncio feroz.
Estico a timidez da minha lesma até gozar na pedra.

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E depois de fazer tudo o que fazem, se levantam, se banham, se entalcam, se perfumam, se penteiam, se vestem, e assim progressivamente vão voltando a ser o que não são

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Eu que sou o rei de toda esta incoerência,
Eu próprio turbilhão, anseio por fixá-la
E giro até partir… Mas tudo me resvala
Em bruma e sonolência,

Se acaso em minhas mãos fica um pedaço de ouro,
Volve-se logo falso… ao longe o arremesso…
Eu morro de desdém em frente dum tesouro,
Morro à míngua, de excesso.

Alteio-me na côr à força de quebranto,
Estendo os braços de alma — e nem um espasmo venço!…
Peneiro-me na sombra — em nada me condenso…
Agonias de luz eu vibro ainda entanto.

Não me pude vencer, mas posso-me esmagar,
— Vencer às vezes é o mesmo que tombar —
E como inda sou luz, num grande retrocesso,
Em raivas ideais ascendo até ao fim:
Olho do alto o gêlo, ao gêlo me arremesso…

* * *

Tombei…

E fico só esmagado sobre mim!…

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" Se todas as tuas noites fossem minhas
Eu te daria, a cada dia
Uma pequena caixa de palavras
Coisa que me foi dada, sigilosa

E com a dádiva nas mãos tu poderias
Compor incendiado a tua canção
E fazer de mim mesma, melodia.

Se todos os teus dias fossem meus
Eu te daria, a cada noite
O meu tempo lunar, transfigurado e rubro
E agudo se faria o gozo teu."
(Hilda Hilst)

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Não espere de mim nada mais que a paixão
Não espere nada de mais do meu coração
Que bate, rebate e grita
Geme, chora e se agita
Sambando nas cordas bambas de uma viola vadia
Não espere encontrar numa canção
Nada além de um sonho, nada além de uma ilusão
Talvez, quem sabe, a verdade
A infinita vontade de arrancar
De dentro da noite a barra clara do dia

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Nao te acovardes diante de tuas ações! Não as repudies depois de consumadas! - O remorso da consciência é indecente...

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